Estavam na oitava garrafa de cerveja.
—- Será que somos ? – falou um deles, mais consigo próprio do que para o amigo.
O outro pensou um pouco. Bebeu de uma só vez o copo de cerveja e limpou a boca com o dorso da mão.
—- A metafísica concreta é o que conta. A epistemologia é a esperança do mundo imateerial.
O outro também pensou.
—- Não, não creio. Tudo se concentra no conhecimento como objeto do próprio conhecimento. A gnosiologia ensandecida de pragmatismo.
—- O conhecimento de nós – afirmou o primeiro.
—- Ou do nós do nós – concluiu o outro.
Um deles pediu outra cerveja. Encheu os dois copos e enxugou o seu imediatamente.
—- To be or not to be.
—- Eis a questão – tornou a concluir o outro.
—- E nós somos?
—- A forma ou a matéria?
—- A exigência do ser profundo. O verdadeiro orgasmo da imaterialidade.
O outro meditou um pouco.
—- Se você é, não sei. Apenas sei que sei que não sou.
—- Não duvido. Você pode não ser, mas tenho certeza que não sou da sua mesma matéria.
—- Se não é, como explica sua presença aqui? – perguntou o outro, com um risinho irônico e vitorioso.O homem é mortal, vocè é um homem, vocè é mortal.
O outro também riu, superior.
—- Aqui não cabe silogismos. O pré-consciente empírico é o que conta. Alias, o id em seu mais puro exibicionismo não é um axioma plausível. Estou aqui, mas a questão é ser ou não ser. Não discutimos estar ou não estar. Isso seria a apologia do cotidiano simplista.
—- Então tudo se resume no ser ou não ser?
—- Exato. A logificação do raciocínio, a aristotelização na nossa realidade extramental.
—- E você é?
—- É óbvio que sou.
—- Então você está filosofando quando diz que estar ou não estar não é a questão. É assim como o corpo dissolvido na purificação da alma.
Pediram a décima quinta cerveja. Ficaram pensando, até um deles romper o silêncio.
—- Não, não, você confundiu tudo. Se sou, não estou. Só estou quando não sou. Não se pode misturar a dialética vivencial com o misticismo platônico.
Calaram-se outra vez. Algumas cervejas depois, um deles falou.
—- Mas nós somos ou não?
—- Eu sou. Você apenas está. Para sermos juntos, teríamos que não ser no estar. Teríamos que ser exclusivamente no próprio ser.
—- E para eu também não ser, o que é preciso?
O outro, com ar professoral.
—- A renúncia aos grilhões. A liberdade é o único fundamento do ser, já dizia Descartes. E isso é o que vale. Não esqueça a relação com o seu eu.
—- E eu sou o meu próprio eu?
—- Somente na relação do seu eu com o seu sou.
Acabaram de beber a trigésima cerveja. Um deles ainda estava com dúvidas.
—- Se não sou, o que resta?
—- O estou.
—- E se também não estou?
—- Simples: fica a concepção científica da existência inexistente.
Mais uma vez ficaram calados. Algumas cervejas depois um deles deu um soco no ar. Foi a descoberta da sua verdadeira relação com o mundo.A derrubada do seu etnocentrismo existencial. A abertura das barreiras e cortinas de chumbo que o isolavam da vida na própria vida.
—- É isso aí! – e deu um soco na mesa. —- Não estou e não sou!
Pediu outra cerveja e bebeu diretamente no gargalo.Arrotou ruidosamente.
—- O que preciso é buscar o meu eu universal e místico. Preciso deixar de ser abscôndito e sair desse momento que nega a minha vocação dogmática. Certo?
O outro pediu uma cerveja e também bebeu direto no gargalo. Arrotou.
—- Certo.
—- E que me torna invisível nas relações com os eus, os estous e os sous dos demais. Certo?
—- Certo.
O primeiro, exultante, levantou-se, e estendeu a mão ao amigo.
—- Adeus. Assim que encontrar o meu eu, saberei que estou no meu sou. De agora em diante, não serei mais. Não estou e não serei mais! Estou, enfim, livre, livre ! Adeus !
O outro apertou a mão estendida, enquanto acabava de secar mais uma garrafa de cerveja, diretamente no gargalo.
—- Tudo bem, mas tem uma coisa, um pequeno detalhe puramente e absurdamente material.
—- Qual?
—- Dá pra você deixar de ser e estar aqui depois de rachar a conta?