João Pessoa, capital do Estado da Paraíba. O despertador, cumprindo a sua irritante sina, feriu dolosamente o silêncio da noite. A cruel agressão ocorreu exatamente às três horas do dia 6 de dezembro de 2006. Como única testemunha da anunciada infração, naquele dia acordei sem qualquer ânimo de depor. Ainda sim cumpri o meu papel, levantando-me da cama. Como já estava desperto, fui obrigado a reconhecer que o estrago estava feito. O despertador venceu-me em seu frio intento de interromper o meu livre sonhar. A realidade cúmplice estava a avisar-me do compromisso de mais uma viagem. Estava ela a lembrar que tinha apenas quarenta minutos para comparecer ao Aeroporto Internacional Castro Pinto, rumo à distante cidade de Boa Vista, capital do Estado de Roraima.
Sorte ou lampejo de relutante inteligência, liguei a televisão do quarto do hotel. Era a velha rotina de buscar a cumplicidade da voz humana para ajudar no relutante despertar. Um hábito, que, reconheço, não é muito saudável para a companheira que fica a dormir. Escutei, enquanto vestia a roupa de advogado, o plantão de notícias. Caos nos aeroportos brasileiros, desprezo aos cidadãos, desrespeito à inteligência, vôos cancelados, desculpas esfarrapadas e autoridades atabalhoadas eram as manchetes principais. E, o que era pior, não era uma notícia reprisada de um passado recente. A reportagem era ao vivo, diretamente transmitida dos mais destacados aeroportos brasileiros.
Coincidentemente, foi anunciado o cancelamento do único vôo que partiria de João Pessoa. A aeronave, segundo a repórter plantonista, ainda estava retida na cidade de Brasília. Descobri, na recepção do hotel, o número do aeroporto e busquei a confirmação da notícia. Trinta minutos depois o óbvio se confirmou. O vôo fora mesmo cancelado. Era, infelizmente, a única informação possível de ser colhida. Não se sabia dizer qual o vôo substituto nem se ele existiria. O caos anunciado pela televisão estava presente no quarto do hotel. Eu, repentinamente, também estava vitimado pela calamidade que se abateu sobre os brasileiros. Conseguir embarcar seria, simultaneamente, o pesadelo e o objeto de cobiça do dia que ainda começava a nascer.
Diante da posterior mudez do serviço telefônico, resolvemos partir para o aeroporto em busca de uma informação mais seguro. Neste instante estava acompanhado de Henri Clay Andrade, subitamente convertido em companheiro de infortúnio, Após batalharmos, contestarmos e exercitarmos a paciência, uma informação foi arrancada do único empregado da TAM encarregado de atender à aflita multidão. Um vôo seria disponibilizado às treze horas, caso ousasse partir de Brasília. E como o resquício de comunicação não era confiável, resolvemos cancelar os compromissos na cidade de Roraima, o que de fato imediatamente fizemos. Descobrimos, posteriormente, que fora acertada a decisão. O “apagão aéreo”, como ficou conhecido o fatídico dia, continuou produzindo vítimas por várias outras jornadas. E, o que infinitamente mais grave, ainda permanecerá assim por dias por infinitos dias.
Enquanto aguardávamos no saguão a confirmação do vôo, vários passageiros protestavam. Alguns educadamente, outros nem tanto. Um francês, no entanto, se destacava sobre os demais. A eloqüência do seu protesto verbal era impressionante. E na sua metralhadora oral, pouco sobrava no campo da destruição moral. Centrava ele a sua crítica ao que chamava de “notória desorganização brasileira”. Concluindo, logo após apresentar uma saraivada de ataques, que o brasileiro era mesmo o maior culpado do “caos brasileiro”.
“O brasileiro não gosta de trabalhar”, “a culpa da desorganização é da epidêmica corrupção dos governantes sul-americanos”, “é por isso que o Brasil não cresce” e “a bagunça brasileira é o maior símbolo do subdesenvolvimento do Brasil”, eram algumas das pérolas sacadas. Alguns ousaram contestar as “ameaças externas” do linguarudo francês. Outros se limitaram à ofensiva do olhar de desprezo. A grande maioria, entretanto, preferiu cuidar de seus próprios problemas. E não eram poucos os males a cuidar.
À noite, exausto e quase-vencido, percebi a dimensão da verdadeira tragédia que se abateu no Brasil. O caos tinha sido devastador, não poupando qualquer aeroporto ou companhia aérea. Vôos e compromissos foram suspensos até não mais poderem ser contados. Pacotes de férias, sumariamente cancelados. Negócios inadiáveis, subitamente abandonados. Cidadãos, completamente desprezados. E, assim, afastando o agora adormecido sentimento nacionalista, fiquei o resto da noite a meditar sobre o francês daquela tarde: “será que ele tem razão”?