Sobre o caso da família de BH e a fantasia do macaco Abu

Tenho lido algumas manifestações a respeito do casal branco de Belo Horizonte que em um dos dias de carnaval fantasiou o filho negro como o macaco Abu, do Aladdin. Frente a tudo o que li, apresento abaixo algumas opiniões.

A última coisa a que deve servir essa discussão é o caminho de afirmar que "o mundo está muito careta", que "o politicamente correto está nos deixando chatos", que "agora tudo é racismo", etc… Aos que dizem isso, devemos lembrar que o racismo estrutura as nossas relações sociais, é parte determinante do nosso cotidiano e se manifesta na instituição e na ação policial que elege meninos negros como “suspeitos” e principais alvos, na subrepresentação de negros e negras na televisão ou no cinema, nas desigualdades salariais e de condições profissionais no mundo do trabalho, mas também se expressa na piada, na linguagem, na "brincadeira" e, sim, nas fantasias de carnaval.

Estamos num país em que o mito da democracia racial tem servido para relegar a população negra a situações diárias de exploração e opressão, físicas e simbólicas. O problema é que muitos de nós nos “indignamos” e nos manifestamos sobre o racismo apenas em situações "extremas": quando um negro é linchado, quando outro é amarrado a um poste, quando uma atriz ou jornalista negras famosas são chamadas de macacas, quando um ator é preso confundido com um “bandido”. Enquanto os nossos olhos e a nossa “revolta” (em muitos casos, é uma revolta de rede social, passageira, facilmente substituída por outra) estão direcionados apenas para esses casos, nas situações mais sutis e comuns do dia a dia o racismo vai aumentando e fortalecendo suas raízes. Ou até mesmo em situações em que “não há intenção” (como afirmou o pai do menino). Fantasiar uma criança negra de macaco, mesmo quando a intenção era representá-la como o melhor amigo do Aladin, expressa uma conotação racista, independente da intenção. Por isso, afirmo: a mais perigosa posição nesse debate todo é a dos que dizem que falar sobre racismo no caso da família de Belo Horizonte em questão é “besteira”, “mimimi” ou “patrulhamento”.

Outra questão importante, em minha opinião, é sabermos que a adoção de uma criança negra – como é o caso – não significa necessariamente ausência de racismo ou, ainda mais, certeza sobre a necessidade de construção de relações sociais que respeitem e valorizem a diversidade étnico-racial. Adotar uma criança negra pode ter várias motivações, inclusive uma espécie de "crise de consciência" de achar que "estamos fazendo a minha parte".  “Racista, eu? Mas adotei uma criança negra”. Soa quase que como: “racista, eu? Mas meu filho tem um amigo negro”. Sim, porque o Brasil é um caso interessante nesse aspecto: dificilmente alguém nega que ainda existe racismo em nosso país, mas dificilmente alguém se assume racista. Racistas, assim como o inferno, são os outros.

Observem, por favor, que no parágrafo acima não estou tratando especificamente do casal de BH, mas de algo que pode ser verificado em famílias perto de nós. Há famílias que adotam uma criança negra, mas não permitem que a empregada doméstica negra ocupe a mesma mesa na hora do almoço, ou que passam pelo porteiro negro do seu prédio e não dão sequer um bom dia, ou que na rua desviam de um menino negro que esteja “mal vestido”.

Por fim, acredito que um caminho importante para a superação do racismo – assim como todas as outras formas de opressão – é que as críticas e o debate tenham um caráter pedagógico e transformador. Criticar para denunciar, para escancarar, para refletir e também para que se mudem consciências, posturas e atitudes. Nesse sentido, acho que esse caso da família de BH, pela complexidade que ela guarda (sim, vai além de dizer “são racistas” ou “não são racistas” ou “foi consciente” ou “não foi consciente”) deve ser tratado, envolvendo inclusive a própria família, de forma a discutirmos conjuntamente: isso é racismo? Por que? E como poderíamos fazer diferente? O primeiro fundamental passo pode ser, diferente do que escreveu em sua rede social o ator Fernando Bustamante (pai do menino aqui citado), entendermos que o racismo não é coisa “da cabeça das pessoas”.

Ao debate.

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