João Silva Franco trabalhou duro para sobreviver. Negro, quase dois metros de altura, teve a vida marcada pelo sobrenome postiço. Profissionalizou-se como sapateiro, remendando o couro, trocando o salto, pondo meia sola nos sapatos da população, independentemente do poder aquisitivo de cada pessoa. Quem podia, é claro, comprava sapato novo, em Aracaju, ou em outra qualquer cidade do País. Mas, quem tinha dinheiro curto, e queria fazer bonito na festa de São Benedito, que é colada na festa de Santos Reis, encerrando o ciclo natalino, entregava seu sapato velho a João Sapateiro, estabelecido nas cercanias do Mercado Municipal. Discreto, mas de boa conversa, o sapateiro exibia na sua oficina de trabalho, folhas de papel pautado, repletas de palavras escritas em letras de forma, fixadas nas paredes e nos poucos móveis do seu canto laboral. Eram trovas, pequenos e longos poemas, que surpreendiam a freguesia. João Silva Franco passou a ser conhecido como João Sapateiro, e reconhecido como o sapateiro poeta. O pequeno espaço de trabalho de João sapateiro foi, em Laranjeiras, um ponto de encontro, um daqueles lugares que reúne as pessoas para uma conversa animada. Farmácia e barbearia, no interior, terminam sendo locais atrativos, onde são formados grupos para as conversas, passando em revista os assuntos dominantes da cidade. Em Laranjeiras o Cartório de Antonio Gomes, a alfaitaria de Graquinho, e a oficina de João Silva Franco, ao lado da farmácia de Antonio Rollemberg, se constituíram em locais especiais, que assitiram a decadência econômica e cultural da cidade, sentindo o êxodo dos mais novos, que saíam para estudar, e o desaparecimento dos mais velhos, arrancados da vida. Quando morreu Bilina, Laranjeiras chorou e o toque do Patrão da Taeira silenciou, até que Maria de Lourdes, também já morta, foi buscar o ritmo, as cores e a coreografia para continuar cantando: “Meu São Benedito, eu não quero mais c’roa, quero uma toalha, enfeitada em Lisboa.” Quando morreu Alexandre, os fiéis do culto negro tomaram nos braços o seu caixão e desfilaram pelas ruas laranjeirenses, elevando e baixando a urna funerária, num gesto simbólico da religiosidade dos afrodescendentes. João Silva Franco viveu quase 90 anos, antes de morrer, placidamente, quinta-feira, dia 9 de setembro de 2008. Sua poesia, tal qual sua arte de consertar sapatos, é um patrimônio de Laranjeiras, um rico exemplo de criação, que nada fica devendo aos vates nascidos naqueles domínios, e que encantaram auditórios, animaram reuniões, motivaram saraus, e deixaram que a alma laranjeirense tocasse as palavras, dispondo-as com a beleza que é matéria prima própria dos poetas. João Ribeiro, Bitencourt Sampaio, entre os mais velhos, Edith Vinhas, entre os contemporâneos, foram artistas da lira, reinventando paisagens e sonhos, para ornar de sutilezas a vida, sem sempre bela, do cotidiano de uma cidade desigual. João Silva Franco era um lírico, mas não cantava apenas o amor. Suas trovas estavam afiadas como navalhas, cortando com cada verso o tecido da realidade. Não calava diante das injustiças, mesmo quando a doçura de seu jeito simples e bom acolhia a todos. Numa de suas quadras, publicada na primeira antologia dos seus versos (Aracaju: Nova Editora de Sergipe, 1965), João Sapateiro corrigia a admoestação de São Paulo, que na segunda Carta aos Tessalonicenses exortava ao trabalho, como única forma de sobrevivência. O poeta, tomado de justa ira, tingiu as linhas do papel pautado com letras grandes, todas maiúsculas letras de imprensa, que diziam: “QUEM NÃO TRABALHA NÃO COME É CONVERSA MUITO FALHA, PORQUE SÓ VEMOS COM FOME O POVO QUE MAIS TRABALHA.” Ele mesmo, trabalhador e poeta, glória entre os simples, da grande e rica Laranjeiras, fez do pé de cabra e do martelo, da faca afiada e do couro, um ofício fino, para embelezar os pés dos seus contemporâneos, como fez da palavra uma arma, manejada para criar beleza, com a coragem dos bons e dos justos. Os sapatos, gastos, se perdem, mas a poesia continua servida, nos livros que publicou.
Laranjeiras produziu, como útero cultural de Sergipe, uma galeria de mulheres e homens que cobertos de glória deixaram seus nomes, estandartizados na memória social daquela que já foi a Atenas Sergipense, e, mais recentemente, Um museu a céu aberto. Assim como os nascidos em Simão Dias são denominados Capa bode, os de Lagarto Papa Jaca, os de Porto da Folha Buraqueiros, quem nasce em Laranjeiras carrega o “gentílico” de Caga Palácio. Alguns dos mais consagrados vultos daquela terra nasceram em outros locais de Sergipe, como é o caso da professora Quintina Diniz, que nasceu em Lagarto, e de João Silva Franco, nascido em Riachuelo. No entanto, a professora e o poeta foram legítimos laranjeirenses, na identidade com a terra e com o espírito dominante no casario assobradado que simbolizou, no século XIX, a riqueza açucareira de toda uma região banhada pelas águas do rio Cotinguiba.
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