Uma estranha decisão do STF

Na semana passada, o STF julgou a ação direta de inconstitucionalidade n° 4029, proposta pela Associação Nacional dos Servidores do IBAMA, por meio da qual pedia a declaração de inconstitucionalidade da Lei n° 11.516/2007 – resultado de conversão da Medida Provisória n° 366/2007 – que dispõe sobre a criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade.

Na sessão realizada na quarta-feira (07/03/2012), o STF, por maioria, declarou a inconstitucionalidade da Lei n° 11.516/2007. O fundamento: na tramitação da MP n° 366/2007, o Congresso Nacional desobedeceu ao comando do § 9° do Art. 62 da Constituição, que impõe a apreciação das medidas provisórias por uma comissão mista, antes da sua votação no plenário da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

Ocorre que, ainda na sessão da quarta-feira, 07/03/2012, o STF decidiu que essa declaração de inconstitucionalidade da Lei n° 11.516/2007 somente produziria efeitos após 24 meses. Isso porque causaria graves prejuízos à segurança jurídica a imediata prevalência dessa decisão, que implicaria na impossibilidade de funcionamento do Instituto Chico Mendes, autarquia federal com importantes atribuições na área do meio ambiente. Assim, nesse prazo de 24 meses, o Congresso Nacional teria tempo para refazer corretamente o processo legislativo com vistas à aprovação regular de lei instituidora da autarquia, sem que prejuízos à continuidade dos serviços administrativos fossem ocasionados pela decisão. Esse tipo de decisão, a propósito, possui amparo na Lei n° 9.868/1999, que, em seu Art. 27, estabelece que Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”.

Tudo mudou, contudo, no dia seguinte. Na sessão realizada na quinta-feira, 08/03/2012, o STF acolheu questão de ordem formulada pelo Advogado-Geral da União, preocupado com o impacto que a decisão tomada na véspera poderia causar em outras 500 leis aprovadas e em vigor desde 2002, resultado de conversão de medidas provisórias que não foram apreciadas por comissão mista, mas apenas por parecer do relator apresentado diretamente ao plenário, em caso de não obtenção de quorum para deliberação na comissão, após 14 dias, nos termos da Resolução n° 01/2002 do Congresso Nacional. Pela decisão tomada na véspera, sustentou o Advogado Geral da União, estaria aberto o precedente para que outras 500 leis em vigor fossem declaradas inconstitucionais, com todas as graves consequências para a ordem e a segurança jurídica.

Surpreendentemente, após meia hora de debates, o STF acolheu a questão de ordem e modificou o conteúdo da parte dispositiva da decisão, para assentar que ao invés de julgar a ADI 4029 procedente, como efetuado na véspera, a decisão era de julgamento de improcedência da ADI 4029, acrescido de declaração incidental de inconstitucionalidade da Resolução n° 01/2002 do Congresso Nacional, com eficácia ex nunc (apenas a partir de então).

Tratou-de de uma decisão para lá de heterodoxa, que desafia todo o sistema jurídico-normativo de controle de constitucionalidade.

Num primeiro exame, detectamos as seguintes anomalias:

1 – O STF modificou o conteúdo de sua decisão (de uma decisão pela procedência da ação para uma decisão pela improcedência da ação) sem que tenha sido provocado a isso por meio de recurso; o único recurso cabível, no caso, seria o de embargos de declaração, que não foi manejado. Atente-se para a circunstância de que não se tratou de mera correção de erro material na proclamação do resultado, o que poderia sim ser efetuado mediante acolhimento de simples questão de ordem; ao contrário, tratou-se de diametral mudança do conteúdo do julgamento, mesmo sem provocação por meio de recurso;

2 – O STF declarou incidentalmente a inconstitucionalidade de resolução do Congresso Nacional em sede de uma ação de controle concentrado de constitucionalidade, o que é em essência algo estranho, porque as declarações incidentais de inconstitucionalidade são proferidas em casos concretos, para o fim de afastar a aplicação da lei ao caso concreto e, em consequência, determinar algum provimento judicial concreto, como por exemplo, condenação ao pagamento de quantia, cominação de obrigação de fazer ou de não fazer, ou então para, em consequência, julgar improcedente o pedido concreto formulado. No caso, a declaração incidental de inconstitucionalidade foi efetuada para o fim de … declarar constitucional a Lei n° 11.516/2007! Ou seja: a resolução do Congresso Nacional que de algum modo permite que as medidas provisórias sejam apreciadas pelo plenário da Câmara dos Deputados e do Senado Federal mesmo sem apreciação na comissão mista foi declarada inconstitucional para efeito da análise da Lei n° 11.516/2007; a Lei n° 11.516/2007 foi aprovada seguindo o rito da resolução do Congresso declarada incidentalmente inconstitucional; a consequência lógica seria, a toda evidência, a declaração de inconstitucionalidade da Lei n° 11.516/2007, tal como decidido na véspera, e não essa estranha declaração de constitucionalidade da Lei n° 11.516/2007 (sim, é isso que quer dizer o julgamento de improcedência de uma ação direta de inconstitucionalidade: a declaração de constitucionalidade da lei ou do ato normativo questionado), ainda que ela tenha sido aprovada com base em uma resolução do Congresso Nacional declarada incidentalmente inconstitucional! A saída foi então a declaração incidental de inconstitucionalidade possuir eficácia ex nunc, ou seja, somente a partir de então, o que preservaria a Lei n° 11.516/2007, aprovada com base na resolução. Ora, mas se era para preservar a Lei n° 11.516/2007, não determinando a necessidade de reapreciação ou reelaboração de seu conteúdo pelo modo constitucionalmente correto, para que serviu a declaração incidental de inconstitucionalidade? Para preservação dos efeitos da Lei n° 11.516/2007 durante o período em que ela esteve em vigor? Não, não para isso, porque se ao final a Lei n° 11.516/2007 foi declarada constitucional, ela não apenas teve os seus efeitos pretéritos preservados, como foi mantida pro futuro, em vigor, válida, considerada constitucional. E aí vem o ponto: a declaração incidental de inconstitucionalidade da resolução do Congresso Nacional, com eficácia ex nunc, atendeu a um outro objetivo, não disposto expressamente na proclamação do resultado, mas que esteve na fundamentação do acatamento da questão de ordem, e que será a próxima anomalia abordada – a declaração incidental de inconstitucionalidade da resolução do Congresso Nacional, com eficácia ex nunc, pretendeu possuir eficácia transcendente, ou seja, aplicar-se a todas as outras leis que tenham sido aprovadas mediante conversão de medida provisória com base no rito por ela (por ela, resolução) estabelecido;

3 – Ou seja, o STF, por meio do mecanismo da declaração incidental de inconstitucionalidade proferida em ação direta de inconstitucionalidade da resolução n° 01/2002 do Congresso Nacional, pretendeu conferir eficácia transcendente à decisão de considerar que a inconstitucionalidade da resolução n° 01/2002 somente se aplica, nos outros casos que não aquele em julgamento, com eficácia ex nunc, ou seja, a partir do momento em que aquela decisão foi proferida. Entendeu? Pois é isso mesmo: por meio de uma declaração incidental de inconstitucionalidade, por definição aplicável apenas ao caso em julgamento, o STF expandiu não apenas o conteúdo dessa declaração (como se tivesse julgado procedente uma ação direta de inconstitucionalidade proposta contra a resolução), como também expandiu a modulação dos efeitos dessa decisão (ou seja, no caso de outras leis aprovadas seguindo o rito estabelecido na resolução, as ações diretas de inconstitucionalidade já propostas e ainda não julgadas e até mesmo as ações que ainda não foram propostas já possuem decisão tomada: as leis não serão inconstitucionais);

4 – A modulação de efeitos da decisão (ou seja, a aplicação da eficácia ex nunc) com eficácia transcendente prejulga a existência de motivos de segurança jurídica ou excepcional interesse social, por presunção. Presumiu-se que a eventual declaração de inconstitucionalidade de todas as 500 leis aprovadas inconstitucionalmente geraria graves prejuízos à ordem e à segurança jurídica, e a tal presunção o STF pretende ter estabelecido eficácia vinculante.

O pior é que as preocupações do Advogado-Geral da União – legítimas, razoáveis – poderiam ser contempladas caso a caso, como já tinham sido contempladas na decisão tomada na véspera (ou seja, declaração de inconstitucionalidade da Lei n° 11.516/2007, com eficácia apenas a partir de 24 meses). No caso, havia se considerado que causaria graves prejuízos à segurança jurídica a imediata prevalência dessa decisão, que implicaria na impossibilidade de funcionamento do Instituto Chico Mendes, autarquia federal com importantes atribuições na área do meio ambiente. Assim, nesse prazo de 24 meses, o Congresso Nacional teria tempo para refazer corretamente o processo legislativo com vistas à aprovação regular de lei instituidora da autarquia, sem que prejuízos à continuidade dos serviços administrativos fossem ocasionados pela decisão. Esse tipo de ponderação poderia e deveria ser efetuado caso a caso, no julgamento de eventuais ações diretas de inconstitucionalidade propostas e/ou em tramitação contra outras leis aprovadas em desacordo com o Art. 62, § 9° da Constituição. Poderia até ocorrer de esse tipo de ponderação acabar prevalecendo em todas as 500 leis referidas. Mas impunha-se que essa ponderação fosse efetuada caso a caso, e não por meio dessa anômala declaração incidental de inconstitucionalidade com eficácia erga omnes e ex nunc. Ou então, após a decisão tomada na quarta-feira, 07/03/2012, o Advogado-Geral da União poderia sugerir à Presidenta da República que propusesse ação direta de inconstitucionalidade contra a resolução n° 01/2002 do Congresso Nacional, com explícito pedido de julgamento de procedência da ação com eficácia ex nunc, conforme autorizado pelo Art. 27 da Lei n° 9.868/99. E aí, em se tratando de ação de controle concentrado de constitucionalidade, ínsita aos efeitos da decisão seria a sua eficácia erga omnes.

Essa estranha decisão do STF entrará para a história como um exemplo de como é possível decidir o que se quer, o que se pretende, o que se acha o mais correto e adequado, e somente após buscar os fundamentos, ainda que estes (pelo menos os fundamentos de índole processual-constitucional) não sejam encontrados!

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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