Sempre digo, em tom de séria brincadeira, que Aracaju é o melhor lugar para morar, desde que se possa viajar. E antes que se diga que cometo uma ingrata heresia, esclareço que o lugar para morar é escolhido levando-se em consideração vários aspectos, dentre eles o coração, a amizade, a tranqüilidade, os recursos naturais, a organização da cidade e a perspectiva de crescimento econômico e intelectual. E não se tem dúvida que Aracaju reúne estas qualidades fantásticas, mesmo porque é uma assumida provinciana-cosmopolita. Como carrego este pensamento em minha bagagem de viagem, estando certo dia na vizinha-irmã cidade de Salvador, riquíssima em manifestações culturais, me aventurei a entrar, evidentemente como mero assistente, no mundo mágico do teatro. Escolhi, influenciado pela opinião favorável de vários amigos, uma comédia musical de nome interessante, especialmente para um assumido nordestino. Estava, assim, encantado e bem-humorado, no Teatro Jorge Amado, curtindo a imperdível peça teatral corretamente chamada “Vixe Maria! Deus e o Diabo na Bahia!”. Baseada no conto “A igreja do diabo”, de Machado de Assis, sem risco de errar, a comédia baiana é uma das melhores encenações teatrais que já tive o prazer de curtir e aprender. Não apenas em função do texto inteligente e cuidadosamente produzido, tampouco pela surpreendente musicalidade e beleza do cenário. Mas, sobretudo, em função da atualidade da história, em que se mesclou o anárquico ambiente festivo da Bahia com temas sérios e áridos, mais especificamente a religiosidade e o uso político da própria religião. Realmente os dramaturgos Gil Vicente, Cláudio Simões e Cacilda Póvoas estavam inspirados quando fizeram a adaptação do conto machadiano, especialmente quando escolheu a Bahia para o Diabo inaugurasse, para ciúme do poderoso Deus, a sua primeira universal igreja. E esta inspiração, não sei se por obra de Deus ou do Diabo, parece contaminar todo o elenco, um time composto por Jackyson Costa (Deus), Frank Menezes (Diabo), Alam Miranda (Anjo Gabriel), Cristiane Mendonça (Naja, a noiva do Diabo), José Carlos Júnior, Lázaro Machado, Aless Borges, Sue Ribeiro, Paulo Borges, Edvana Carmo de Carvalho, além dos dançarinos Ana Maria Burguês, Cristiane Florentino, Ísis Cardoso, Ísis Oliveira, Maurício Oliveira,e Milena Bomfim. E não para aí, na equipe de criação entra Jarbas Bittencourt, Euro Pires, Rita Brandi, Miguel de Carvalho e Irmã Vidal. Não sem razão a comédia musical tem sido sucesso de público e crítica em Salvador, aplaudida de pé em todas as suas apresentações. Não sem razão tem sido comparada, por sua inteligência e humor, ao fantástico “Auto da Compadecida”, do imortal Ariano Suassuna. Não sem razão estava em cartaz por mais de um ano, sempre com bilheteria lotada. A alegria da noite somente foi quebrada quando lembrei, cabisbaixo, que os moradores de minha Aracaju, salvo os que têm a oportunidade de viajar, iriam perder o imperdível espetáculo. Para compensar a minha agonia, indicava a peça para os meus amigos que iam passar alguns dias ou um final de semana em Salvador. Sabia que era um esforço inútil, pois quase todos me informavam, depois, que não tinham conseguido comprar o cobiçado ingresso, pois esgotar a bilheteria era uma rotina naquele grupo teatral. Mais eis que Aracaju, gentilmente, resolveu brindar os seus moradores trazendo para cá a comédia nacional radicada na Bahia, fazendo-a entrar em cartaz no Teatro Tobias Barreto (DIA), nos dias 01, 02 e 03 de julho. É mesmo uma rara oportunidade para fazer de Aracaju uma cidade completa e bem-humorada, onde, além de ser excelente para morar, nestes dias não se precise viajar. É aproveitar ou largar, mesmo porque não é todo o dia que Deus e o Diabo, juntos, fazem do humor uma melodia – Vige Maria! – me perdoe a ironia. * Cezar Britto, é advogado e secretário-Geral da OAB
A possibilidade de viajar como acréscimo ao morar em Aracaju, antes que se registre que estou sendo gabola, decorre da simples constatação de que é impossível encontrar perfeição em única pessoa ou cidade. É neste sentido que fala em preencher os vazios de Aracaju em outras cidades, especialmente na questão referente ao acesso à cultura, até porque a universalidade desta impede o seu aprisionamento em um só lugar. E mesmo que se diga que Aracaju tem espaços culturais modernos, e fato tem vários deles, o saber exige conhecer outras paradas, razão porque, sempre que posso, ouso provar do gostinho alheio.
cezarbritto@infonet.com.br
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