A Rosa, a Morte e o Rouxinol – por Gustavo Aragão

            …Há quem diga que pássaros não falam nem sentem como os humanos, muito menos depois de mortos. Não se assustem, amiguinhos, mas como toda regra tem exceções, eu sou a Exceção e estou aqui a duras penas para lhes contar uma linda, e triste história de amor…

            Numa bela manhã primaveril, estava eu cantando alegremente em meu ninho, enquanto observava as belas flores que cobriam o chão a perder de vista. Todas muito viçosas, coloridas, mas eis que meus olhos espertos pareciam ter se encantado por uma em especial. Era ela uma rosa vermelha, dentre inúmeras rosas de mesma cor, e me parecia que ela sentia o vento com mais graça e leveza, que exalava o mais doce perfume que se destacava entre o de todas as outras flores, suas folhas pareciam mais verdes, seus espinhos, macios e não me espantavam mais, sua haste, mais firme e elegante; de fato era ela uma flor encantadora.

            Um dia tomado de ímpeto que o sentimento de amor ou paixão nos provoca, tomei a decisão de visitá-la, numa tentativa de me aproximar mais.

            Passei rasteiro pelas águas do riacho e já me sentia mais charmoso, revigorado. Enchi meus pulmões com o mais puro ar das montanhas, endireite-me as penas com meu bico, ficando ainda mais belo só pra ver o meu amor. Respirei fundo e fui encontrá-la. Eis que a encontro na companhia de uma senhora que eu não conhecia. Não parecia das redondezas. Não tinha características comuns, conhecidas e distinguia-se de todos os seres que ali viviam. Por todas as regiões por onde voei, nunca encontrei ser parecido ou igual e com olhos profundíssimos de tanto mistério.

            Ao chegar sou presenteado com dois fartos sorrisos e tão diversos: um, doce como o mel mais puro e o outro tão belo e misterioso como uma noite de lua cheia.

            ― Bom-dia, Rosa! Bom-dia, senhora! ― Cumprimentei-as.

            ― Bom-dia, Rouxinol! ― Responderam-me suavemente numa só voz.

            ― Como está bonito hoje, Rouxinol! Para onde vai tão charmoso? ― Rosa me perguntou ainda mais vermelha de tanta timidez, olhos baixos e sorriso amarelado de vergonha.

            ― Vesti-me assim para você, para receber em troca seus olhos sorridentes e seu sorriso doce como seu perfume.

            ― Assim deixa-me sem jeito. Ainda mais na frente das visitas. ― Disse-me Rosa envergonhada, repreendendo-me.

            ― Oh, sim, perdoe-me, senhora. Nem me apresentei…Como sou distraído. Chamo- -me Rouxinol. E a senhora? ― perguntei-lhe meio sem graça.

            ― Sem problemas, meu querido pássaro. Acho que já o conheço há um bom tempo. É sempre muito charmoso e canta como poucos. ― Falou-me a Morte encantada por me conhecer mais de perto.

            ― Esta é a Morte, doce Rouxinol. Conheci-a hoje pela manhã quando formou-se um imenso burburinho na plantação das margaridas, por causa da morte de uma das mais antigas e sábias daquelas flores. Minha mãe a conhecia, foram amigas de infância. ― Rosa me esclareceu.

            ― Uuuh… ― Arrepiei-me inteiro, comovido com a notícia.

            A Rosa, então, relembra, pensativa:

― Estávamos aqui conversando sobre esse tipo de coisa… A vida é interessante, não é? Estamos todos aqui reunidos, conversando, alegres… E de repente não estamos mais… Alguém parte para o desconhecido.

― Todos os seres vivos são assim mesmo, tão frágeis como uma bola de sabão, apesar de acreditarem que são os donos do mundo; onipotentes. Eles nascem, desenvolvem–se e caminham dia após dia para a morte, única certeza que lhes resta. Geralmente estou com vocês desde o primeiro dia em que recebem o dom da vida. Caso aconteça algum acidente grave ou contraiam uma doença que não suportem, sempre estarei lá, vigilante, para acolhê-los em meus braços. ― Diz serenamente a Morte. ― Apesar de que nem sempre sou bem-recebida. ― Sorri, simpática.

― Dizem que, quando morremos, viramos sementes. ― Disse a Rosa.

― Já ouvi dizer também que quando morremos, vamos para a mais alta nuvem e ficamos de lá observando tudo que acontece aqui embaixo. Meu vô dizia que de lá de cima a gente ia poder ver todo mundo tão pequenininho que ia parecer uma colônia de formiguinhas. Se é que é assim, vou ficar faminto! ― Eu disse em tom descontraído.

― E vai virar tamanduá, é?! ― zombou a Morte.

A Rosa e a Morte caíram na gargalhada.

― Acho melhor pararmos de falar nessas coisas. A dona Coruja, sábia como ela só, sempre diz: “Uh, uh, os pensamentos e as palavras carregam um poder que desconhecemos.”. ― Falei, temeroso.

― Não é preciso ter medo de mim, querido Rouxinol, sou parte da vida, sou a conseqüência natural da vida. E não sou tão feia assim. Não há nada mais certo na vida de todos os seres que vivem do que o dia em que se encontrarão comigo. ―Disse-me sabiamente a Morte.

― Já ouvi também, enquanto voava sobre uma comunidade indígena, dois indiozinhos dizendo que o pajé havia se tornado uma estrela da Constelação da Ursa Maior. Acabei sorrindo e piando tão alto que fui visto quase atingido por flechas que atiraram em minha direção, quase viro churrasco! ― Relembrei a situação com entusiasmo, parecia vivenciá-la novamente.

A Rosa e a Morte tornaram a cair na gargalhada.

― Vocês riem, é porque não aconteceu com vocês… ― De súbito, senti-me estranho. Senti um aperto no peito. E saí voando sem sequer me despedi delas, que possivelmente julgaram-me indelicado e ficaram atônitas de preocupação com a minha atitude repentina.

Recolhi-me num ninho no alto da montanha que ficava de frente para o mar. Fui lá para refletir. Sentia-me estranho há alguns dias, mas não sabia o porquê. Ao mesmo tempo em que estava feliz para me entregar ao amor, sentia que algo de estranha sensação me tomava por vezes.

“Será que tudo começou após a conversa que tive com a dona Coruja? Falei-lhe abertamente sobre o que estava sentindo pela Rosa. E ela me disse:

― Uh! Uh! Meu querido Rouxinol, como poderão dois seres de naturezas tão diferentes se amarem  de modo pleno. Você é um ser do ar e ela é da terra. Não vejo possibilidades nisso. Uh! Uh! Não quero que sofra, mas a dona Andorinha me falou que sou do beija-flor, pássaro mais próximo das flores, que a Rosa é uma flor muito querida de todos… Uh! Uh! E que a mãe dela estava querendo cazá-la com um cravo bem-sucedido de plantações vizinhas. Uh! Dizem as abelhinhas, aquelas que adoram um zum zum zum, que não deu  muito certo, porque o Cravo acabou brigando com a Rosa, debaixo de uma sacada, disseram-me que o Cravo saiu ferido e a Rosa despetalada.Coitada da Rosa!Uh! Uh! ― Pra senhora ver, dona Coruja, o mais importante é que exista o amor, independentemente da natureza de cada um. Eu sei que mesmo eu sendo do ar e ela da terra, eu poderia fazê-la muito feliz! ― Disse-lhe com firmesa.

―É, meu querido, uh! agora diz a dona Rã que quem anda cercando a Rosa é o senhor Girassol, forte, belo, muito bem-humorado… Uh! ― Alertou-me a dona Coruja.

― É forte, belo e bem-humorado, mas não canta como eu. E a beleza é algo que não se julga em uma direção. A senhora pode achá-lo bonito, e ela não. Vai ver ela me acha mais bonito e charmoso. ― Retruquei não me dando por vencido.

― Sim. Isso é verdade.Uh! ― Concordou dona Coruja.”

 Arrepiei-me novamente como se estivesse voltando à realidade. Logo deparei-me com a Morte ao meu lado. Estava como um analista, parecia ouvir meus pensamentos, atenciosamente, absorvia minhas lembranças deliciosamente.

― Que susto! A senhora está aí há bastante tempo? ― Questionei  meio assustado.

― Estou sempre com vocês. Vocês são tão engraçados… ― Retrucou com um sorriso suave.

― Como assim? ― Perguntei.

― Digo com relação ao modo como encaram a vida e a morte, euzinha aqui.

― É?! Acredito que não sou somente eu, mas outros também acham-na tão estranha e misteriosa… A senhora nos assusta, aparece de repente e nem avisa. Outras vezes vem devagarinho como anunciando a chegada fatal-triunfante. E para onde nos leva? Nunca diz… ― Questionei.

Reinou o silêncio.

― Vejo de cima da copa das árvores por onde passo inúmeras relações. Há uns três anos estava treinando os meus cantos matinais quando percebi a alegria de mãos dadas com as crianças brincando de ciranda na praça, brincavam juntas também de pega-pega, comiam algodão doce, maçã do amor, tomavam sorvetes e lambuzavam-se de chocolates e balas sortidas. Tempos após, já noutra árvore, vi a beleza do amor que se manifestava num casal de sapinhos que trocavam juras de amor, no carinho dado ao gato pelo seu dono e no carinho trocado por um casal de namorados. Depois de mais alguns dias vi a tristeza nos olhos de um cachorro vira-lata, faminto, assim como a de um menino que pedia no farol um prato de esperança e comida…

― É, meu querido Rouxinol, viver é estar em contato com essas tantas diferenças. É experimentar cada sentimento, cada emoção…

― Desculpe-me, mas não quero mais falar sobre essas coisas. Entristeço-me.

― As tristezas, assim como as alegrias são importantes para se viver, fazem parte da vida. ― Disse-me a Morte.

― Pode até fazer parte. Mas para mim já chega! ― Cantei um dos meus mais belos cantos matinais, que acredito pôde ser ouvido lá pelas bandas do horizonte. ― Vou ao encontro do meu amor, pois perto dela sou feliz e inteiro…

― Não vá! ― Gritou-me a Morte como a querer me alertar de algo.

Fui em disparada ao encontro de Rosa, chegando lá a encontrei ao lado do senhor Girassol, que investia todo seu charme sobre ela. Não me agüentei em mim de tanta tristeza e fiquei ao longe observando os gestos dos dois e tentando ouvir sobre o que conversavam.

― Serás a noiva mais bela de todas que já se viu e ouviu falar. Cobrirei-te das mais belas gotas de orvalho de manhãs mornas e taciturnas. ― Dizia o senhor Girassol. E eu me contorcia tamanha era a dor atinada pelo meu ciúme.

Saí dali para não mais ouvir, pois cada palavra ouvida era pedra atirada em meu coração. Minha alma de pássaro ferido gemia de dor de amor.

Recolhi-me próximo ao riacho debaixo de uma frondosa árvore. A dor que há dias me tomava de súbito e em silêncio parecia milhões de vezes maior. Entre o abrir e o fechar lânguido de olhos, vi a Morte serena do meu lado.  Ali dei o meu último suspiro e pela última vez senti-me quente pelo calor da vida, e pela última vez senti a batida do meu coração, agora inerte. Restou-me ali meu corpo e minhas penas vazias de sentido, vazios de mim e eu em silêncio profundo.

Brotou-me uma lágrima, expelida pelo olho esquerdo, do cansaço que tinha condensado em mim. A Morte amiga carregou-me em seus braços, deu-me a calma precisada e me fez de sopro e leveza, ainda pleno de sentidos.

A Morte disse-me tempos depois que Rosa vivia feliz ao lado do seu digníssimo esposo, o senhor Girassol, e que teve com ele rosas-meninas tão belas quanto ela. Nada respondi-lhe, fiquei em profundo silêncio e cantei cantos de saudade, pois mesmo estando morto a amo com toda intensidade.

A Morte olhou-me nos olhos e quase entristeceu-se, mas logo deu-se por resignada, já que se tratava do curso natural da vida.

Ao meu amor, digníssimo amor, o meu canto de saudade.

Assinado: Rouxinol.

    Gustavo Aragão Cardoso

22/12/2009

 São Paulo

 

 

 

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