A Carne é Fraca: aqui e em Veneza.

O recente escândalo da “Operação Carne Fraca”, envolvendo a Polícia Federal e os sucessivos desmentidos de autoridades federais, me levaram a lembrar a novela “Morte em Veneza”, que Thomas Mann publicou em 1912, onde um compositor austríaco em crise de maturidade e androginia, apaixona-se por um garoto polonês de extraordinária beleza.

A novela baseou o filme de mesmo nome, produzido em 1971 por Luchino Visconti, com Dirk Bogarde, no papel do Compositor austríaco Aschenbach, e Björn Andrésen, representando o belo polaco Tadzio, ambos gozando férias numa Veneza assolada por uma terrível por mortal epidemia de Cólera, calamidade mantida em segredo pelas autoridades italianas, de modo a não prejudicar o turismo da região.

Devo ter assistido o filme em 1972 ou 73, e o livro tem-me sido uma leitura renovada desde 1979, quando a Editora Abril publicara a notável coleção “Obras Primas”.

“Morte em Veneza”, vem de novo a minha mente ao analisar o escândalo atual da “Carne Fraca”, algo que me parece, permitam-me dize-lo, pouco explicado ainda.

E o assunto também espicaça a minha memória, porquanto nos idos, tidos e havidos como sombrios, mais especificamente nos meses de julho a outubro de 1977, estava eu com trinta anos, quando participei de um ciclo de palestras, o quarto, promovido pela Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG), em Aracaju.

Este ciclo fora liderado pelo Desembargador Serapião de Aguiar Torres, os Médicos Gileno Lima,  Cleovansóstenes Pereira de Aguiar e Alexandre Menezes Neto, figuras de grande destaque na sociedade sergipana.

Naquela época, participar de um ciclo promovido pela ADESG era suprema honra, afinal debatia-se os altos problemas nacionais com a seriedade que o regime estabelecia, convocando os melhores cérebros para a discussão dos objetivos permanentes de um Brasil que se pretendia grande.

Poder-se-á dizer que tudo era maquiagem de um regime cruel e apavorante que tentava esconder a tortura que vigia nos calabouços da repressão.

Coerção, diga-se por acréscimo, que hoje se afirma ter sido demasiadamente cruel, em cuja apreciação não pretendo enveredar. Por agora, não tenho motivação e interesse para defende-la, nem para combate-la, sobremodo, afinal persisto mal convencido deste sofrimento tão lastimado e injuriado, que à falta de corpos de delito, fomenta diluviana carpição em tanta ausência de cadáver.

Mas, deixando os milhares e milhões de cadáveres deste imaginário valetudinário de um país que não se reconhece no espelho, num passado de pouco lanho e insuficiência mangual, relembro que neste Ciclo pretendia-se reconstruir um país segundo um pensar consistente com rota progressiva em firme leme.

Tentava-se realizar algo pensado na prancheta, projetar o país para o futuro, evitando os descaminhos e as experimentações desnecessárias.

Mas, isso tudo foi pro brejo. Começava um crescente descontentamento norteado por um pensar anarcodemagógico de que as coisas só funcionariam se fosse permitida a plena desorganização entrópica.

E o resultado estamos a ver agora; nunca tivemos um período maior de desordem e anarquia, com governos fracos, golpes de estado sucessivos, permeados por escândalos e passeatas para todos os temperos.

Continuamos, porém, a viver num país maravilhoso, com sol demais e pouca chuva, mas que nunca se leva a sério.

Ausência de seriedade revelada agora, com o escândalo que não é nem devia ser; e nem devia ter sido conhecido!, o da “Carne Fraca”: uma carne que, flagrada apodrecida e/ou adulterada, foi estranhamente batizada como fraca.

É aí que eu me volto para Thomas Mann e seu “Morte em Veneza”, relembrando também o 4o Ciclo da ADESG.

Falo daquele ciclo, porque ali eram discutidos temas inerentes à Doutrina da Escola Superior de Guerra e sua Política Nacional de Segurança e de Desenvolvimento para o Brasil.

Relembro então que entre os assuntos ali tratados falou-se com especial importância de temas muito estranhos para mim como: INFORMAÇÃO e CONTRA-INFORMAÇÃO.

Tais assuntos me são ainda estranhos, afinal sempre fui um Professor. Ministrava então muitas aulas de Matemática e Física, assuntos que demandam muito trabalho, e que muita gente refuga. Nada a ver com INFORMAÇÃO, algo que sempre me cheirava à seara senão da futrica, tendia à bisbilhotice, ou coisa pior.

Eu sempre procurei dar preferência à BOA FORMAÇÃO de jovens. E ainda hoje persisto em idêntica missão nos meus escritos, jogando-os como sementes para que feneça ou produza frutos.

Assim, se antes buscava preparar os meus alunos para a vida, capacitando-os profissional e intelectualmente, continuo plantando no meu entorno a semente da ética e do respeito, para o bom convívio familiar, no lar e na escola, na praça, na Igreja e no clube, estimulando o bom convívio e a digna cidadania.

De modo que, se INFORMAÇÃO continua uma matéria difícil para mim, que devo dizer da CONTRA-INFORMAÇÃO?

E estava lá no MANUAL BASICO DA ADESG, um livro de capa verde que resgatei agora, como mote destas lembranças, afinal os palestrantes do Ciclo seguiam-no à risca.

Lê-se então na página 323, textualmente: “As finalidades da Informação e da contra-informação são perfeitamente distintas: a primeira é caracteristicamente ofensiva e busca obter conhecimentos; a segunda é, ao contrário, defensiva e visa a negar conhecimentos e impedir a ação de agentes que os buscam (grifo meu). Não obstante esse caráter defensivo da Contra-informação, os seus métodos de ação, as suas operações, são essencialmente ofensivos”.

A lembrança vem a mim principalmente porque eu fora o estagiário escolhido para saudar por final o orador da noite, realizando uma espécie de moderação entre o palestrante e os debatedores do auditório.

Foi aí que me salvou Thomas Mann e o seu MORTE EM VENESA.

Porque o livro fala de um homem envelhecido e decadente que se apaixona perdidamente por um jovem  rapaz polaco, vendo-o como suprema beleza num amor platônico, misto de atração estética e talvez misoginia.

Ocorre que o livro trata também de um exemplo notável de CONTRA-INFORMAÇÃO, e este foi o mote da minha intervenção, que, diga-se de passagem foi muito bem recebida, embora talvez não fosse bem entendida, uma vez que eu estava mais para questionar a validade da contrainformação citada, do que enaltecer o seu sucesso.

E assim volto ao livro, porque ali o cenário é a cidade de Veneza, suas ilhas repletas de turistas em burburinho babélico de idiomas, desfrutando das águas benfazejas do Adriático, enquanto na cidade grassava terrível epidemia de cólera.

Uma epidemia que era mantida em segredo pelas autoridades italianas que escondiam “criminosamente” a infecção descontrolada, para que o alarme não atingisse o empresariado hoteleiro, gerando prejuízos financeiros e desemprego.

Não está a história se repetindo agora?

O noticiário fala que foram descobertos desmandos na produção dos nossos frigoríficos.

Fala-se de infecção por salmonela, mistura com papelão, uso de fussura de porco na mistura de embutidos, maceração com ácido ascórbico e sorbitol, falha e corrupção na fiscalização, tudo alardeado pela Polícia Federal.

O resultado da notícia foi letal.

O mundo está a desconfiar da nossa honestidade, e o resultado é que o dito precisa ser desdito, urgentemente, numa contrainformação urgente e necessária, com o presidente comendo churrasco, e o ministro dando entrevista, calando-se os delegados que apuraram todo o malfeito, condenando-lhes o mau apuro por desaprumo.

É como em MORTE EM VENEZA; os turistas permaneciam desinformados e imersos na epidemia. Não havia notícia, nem jornais em seus idiomas pátrios, que relatassem o perigo ambiental vigente, porque tudo era censurado e mascarado para não perturbar o riso e o sizo.

Dir-se-á que ali era mais fácil, afinal tratava-se de um tempo tranquilo, fins do século XIX, não havia telefone, o rádio era um sonho, e o telégrafo bipava longinquamente.

E os tempos eram tão felizes que o compositor Aschenbach, mesmo descobrindo a epidemia, deixou-se contaminar e até morrer na praia, embevecido pela figura de Tadzio, o jovem que nunca lhe correspondera a fascinação, devolvendo sequer um sorriso, um olhar uma palavra…

Voltando agora à contrainformação e à “Carne Fraca”, direi que não estou convencido em suficiência de que tudo foi apenas um engano atabalhoado de alguns fiscais da Polícia Federal.

Acho que há algo mais a merecer comprovar do que um prestimoso desmentido.

Por acaso não é comum entre nós a falcatrua, o jogo esperto de enganar o consumidor?

E aí eu estou a lembrar da compra de um automóvel para o meu filho Machado quando passou no vestibular. Um veículo me fora indicado por um vendedor amigo que garantia a procedência. O carro apresentava-se perfeito, e o único problema era na direção, cuja curva estava limitada a exigir sucessivos vai-e-vens  para realizar uma manobra.

O fato vale contar porque no início eu pensava que a dificuldade da manobra era por imperícia de meu filho, e só depois eu mesmo comprovei quando resolvi dirigir o carro. O carro tinha sofrido uma capotamento que danificara o chassi, e estava definitivamente defeituoso.

Felizmente o carro foi recebido de volta na mesma loja na troca por um outro zero quilômetro.

Lembro que o proprietário da concessionária pediu muitas desculpas, sem que houvesse qualquer abalo do seu empregado, o meu “mui amigo” vendedor que me armara uma “pregada”.

Os marchantes vendiam carne neste belo mercado, utilizando balanças facilmente adulteradas

Pregadas em cascatas à parte, sou de um tempo em que os marchantes cortavam carne no mercado Antônio Franco.

Naquele tempo era tão comum o vício na pesagem que existia uma balança destinada para a conferência do peso.

As adulterações aconteciam com taras ocadas ou com pequenos contrapesos escondidos por baixo da balança.

Hoje não se usa mais as velhas balanças e as falsificações quando existem são sofisticadas.

gual aos postos de gasolina que foram fechados recentemente por adulterar o volume de combustível, o noticiário denunciou que por ausência de fiscalização uma rede de postos introduzira um chip  no mecanismo da bomba, para maquiar o preço e o volume do combustível vendido.

Se a picanha estiver imprópria para o consumo, de quem é a culpa: do fabricante?, do vendedor ?, do carimbador do selo SIF?, ou minha enquanto consumidor? Muitas interrogações.

Soube que alguns postos foram lacrados, mas por certo a liberação já foi concedida, como sói acontecer com as demandas judiciais, para se repetir, procrastinar.

Voltando, porém, à “Carne Fraca”, acho estranha a necessidade de exposição de um selo de qualidade de responsabilidade do Governo Federal, do Estadual ou do Municipal, presentes nas carnes e seus produtos.

Tal selo, estaria para mim, enquanto consumidor, como um pressuposto governamental de fiscalização onipresente e contínua.

Como faze-lo com funcionários públicos insuficientes em paralizações e insatisfações?

Está este selo menos inconsútil, que inútil e desútil, ou é apenas mais um inocente fútil?

Por futilidade e tolice, exibo uma fotografia de algumas pedras que encontrei em meio quilo de feijão comprado num dos nossos mercados.

O feijão era novo, o mais caro e de primeira, aquele molinho de cozimento fácil, tirado de um saco enorme, na minha frente. O resultado restou na foto e não no dente, graças a minha Tereza que zela por nós todos daqui de casa.

Feijão comprado num dos nossos mercados com algumas pedras não preciosas. Estariam ali por acaso?

Pois é, em tantos enganos, todos nos achamos no direito e no dever, por esperteza e estultice, de descumprir as leis e regulamentos, e assim, não é preciso ir longe, qualquer aferição consciente evidencia a molecagem nossa no dia-a-dia.

Punições e más convenções à parte, há uma regra no movimento de Rotary Internacional que ferreteia as consciências profissionais, enquanto dogma afirmativo e verdadeiro. Diz a regrinha: “Mais se beneficia quem melhor serve!”.

Não se trata de um postulado ingênuo e tolo, afinal segue-se um corolário senão jocoso, pelo menos algo icônico, por irônico, atribuído a Sócrates: “Se o desonesto soubesse a vantagem de ser honesto, ele seria honesto ao menos por desonestidade.

Trocando de filósofo, em tantos desmentidos políticos e jornalísticos da “Operação Carne Fraca”, que Hannah Arendt seja citada, formidável: “Jamais alguém pôs em dúvida que verdade e política não se dão muito bem uma com a outra, e até hoje ninguém, que eu saiba, incluiu entre as virtudes políticas a sinceridade”.

E basta! Vamos ter cuidado com nossas compras!

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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