A Comissão Nacional da Verdade

Na última quinta-feira, a Presidenta da República, Dilma Roussef, anunciou publicamente os nomes por ela indicados para composição da Comissão Nacional da Verdade, com início dos trabalhos previstos para hoje (16/05/2012).

A Comissão Nacional da Verdade, nos termos da lei que a instituiu (Lei n° 12.528, de 18/11/2011), é criada no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, e terá a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período de 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988, “a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional” (Art. 1°).

Para alcançar essas finalidades legais, a Comissão terá por objetivos: esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos mencionados no caput do art. 1o; promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior; identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos mencionadas no caput do art. 1o e suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade; encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos; colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de direitos humanos; recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações.

A Lei n° 12.528/2011 estabeleceu os poderes de que disporá a Comissão Nacional da Verdade para produzir os resultados desejados: receber testemunhos, informações, dados e documentos que lhe forem encaminhados voluntariamente, assegurada a não identificação do detentor ou depoente, quando solicitada; requisitar informações, dados e documentos de órgãos e entidades do poder público, ainda que classificados em qualquer grau de sigilo; convocar, para entrevistas ou testemunho, pessoas que possam guardar qualquer relação com os fatos e circunstâncias examinados; determinar a realização de perícias e diligências para coleta ou recuperação de informações, documentos e dados; promover audiências públicas; requisitar proteção aos órgãos públicos para qualquer pessoa que se encontre em situação de ameaça em razão de sua colaboração com a Comissão Nacional da Verdade; promover parcerias com órgãos e entidades, públicos ou privados, nacionais ou internacionais, para o intercâmbio de informações, dados e documentos; e requisitar o auxílio de entidades e órgãos públicos.

Trata-se, sem dúvida, de importante mecanismo institucional para que a história brasileira recente seja passada a limpo, notadamente no que se refere às sistemáticas violações de direitos humanos e práticas reiteradas de crimes contra a humanidade praticados durante os períodos autoritários de nossa história recente, períodos de repressão política e supressão das liberdades públicas, políticas e individuais (confira o que aqui já foi escrito sobre o assunto:
https://.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=79840&titulo=mauriciomonteiro
https://.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=98084&titulo=mauriciomonteiro).

Ocorre que, até o presente momento, prosseguem sem o devido esclarecimento diversos desses crimes praticados durante aquele período. Familiares das vítimas, até hoje, não possuem uma resposta oficial do Estado Brasileiro sobre o destino de seus entes queridos, muitos dos quais foram vítimas de desparecimentos forçados, torturas, assassinatos com ocultação de cadáver. De igual modo, a sociedade brasileira ainda não tem o relato circunstanciado de como foi montado o aparelho repressor do Estado para a montagem da máquina repressora e violadora dos mais essenciais direitos da pessoa humana. Como se sabe, o conhecimento da história é crucial para a construção consciente e cidadã de um presente e de um futuro livre dos equívocos cometidos.

O direito coletivo à memória e à verdade histórica deve ser devidamente satisfeito, e a Comissão Nacional da Verdade se torna importantíssimo instrumento dessa efetivação. Sua atuação, nos marcos da Lei n° 12.528/2011, se fará na forma de comissão investigativa, com nítidos poderes instrutórios próprios das autoridades judiciais (a exemplo de convocação de pessoas para prestar depoimento como testemunhas, requisição de documentos, determinação de perícias e diligências, realização de audiências públicas). Ao final dos trabalhos (que deverá ocorrer no prazo de dois anos a contar de sua instalação), a Comissão deverá apresentar relatório final circunstanciado, com conclusões e recomendações (Art. 11). Todo o acervo resultante dos trabalhos da Comissão serão encaminhados ao Arquivo Nacional, para integrar o projeto Memórias Reveladas (Art. 12). Mas a Comissão não possuirá qualquer espécie de poder punitivo, persecutório ou julgador. Nos termos da lei, seu papel é do resgate histórico da verdade.

Ministro Gilson Dipp membro da Comissão Nacional da Verdade

Em jantar realizado na sexta-feira passada (11/05/2012), no Palácio do Alvorada, a Presidenta da República reuniu os membros da Comissão e disse que vai proporcionar todos os meios para que os trabalhos se desenvolvam sem empecilhos e sem “revanchismos”.

Além disso, o Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Gilson Dipp – um dos membros da Comissão Nacional da Verdade indicado pela Presidenta da República – foi escolhido para atuar como um coordenador-geral dos trabalhos da Comissão.
Salvo melhor juízo, existe nítido impedimento constitucional para a participação do Ministro do STJ Gilson Dipp na Comissão Nacional da Verdade. Isso porque, magistrado que é – dos mais conceituados – está proibido de exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outro cargo ou função, salvo uma de magistério (Art. 95, parágrafo único, inciso I da Constituição Federal). E as atividades dos membros da Comissão Nacional da Verdade qualificam-se juridicamente, sim, como “função”. Demais disso, função remunerada (“os membros da Comissão Nacional da Verdade receberão o valor mensal de R$ 11.179,36 pelos serviços prestados” – Art. 7° da Lei n° 12.528/2011). Mais ainda, a Comissão Nacional da Verdade é órgão instalado no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, e seus membros são nomeados pela Presidenta da República. Como membro do Poder Judiciário (STJ), não pode ter atuação direta ou indiretamente subordinada à Presidência da República, sob pena de suspeição de sua atuação em processos judiciais de interesse do Poder Executivo, o que configura evidente violação do princípio constitucional da independência dos Poderes.

Embora a indicação do seu nome pareça revelar a cautela da Presidenta da República de assegurar a atuação da Comissão como grupo “de Estado” e não “de Governo” – sendo o Ministro Gilson Dipp, conhecido por seu equilíbrio e isenção, maturidade e compromisso com o serviço público, além de sua experiência como magistrado e ex-corregedor do CNJ – o fato é que a sua indicação se faz à revelia do que prevê a Constituição. Ainda há tempo de corrigir, se é que existirá disposição para tanto.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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