A ditadura institucional das súmulas vinculantes

Um dos capítulos mais agudos do recente e intenso ativismo judicial – e mais danoso à democracia – é, sem dúvida alguma, a adoção, pelo Supremo Tribunal Federal, da edição proliferada de súmulas vinculantes como política institucional.

 

Já tivemos a oportunidade de apontar criticamente esse fato em várias ocasiões ao longo desses quase três anos de coluna na Infonet.

 

Na coluna de 26/08/2008, por exemplo, comentamos a aprovação, pelo STF, da Súmula Vinculante n° 13, cuja redação fora aprovada na sessão de 21/08/2008. Naquela sessão, o STF acabara de concluir o julgamento de dois processos que versavam sobre a temática do nepotismo.

 

Dissemos, então, que “o próprio debate sobre a redação da Súmula bem evidenciou o caráter legislativo (indevido) dessa atuação. Não se recorria ao que decidido nos precedentes para estabelecer a formulação geral. Recorria-se, sim, ao que deveria ser dito de modo a melhor implementar os comandos constitucionais segundo o pensamento dos Ministros. Uma súmula, porém, deveria se limitar a explicitar o entendimento consolidado da Corte diante de vários julgamentos reiterados num mesmo sentido de interpretação”.[1]

 

A circunstância de que a edição da Súmula Vinculante n° 13 – explicitadora de que a Constituição Federal de 1988 proíbe a prática do nepotismo em suas variadas formas – atendia a uma legítima demanda da sociedade apagou, porém, as observações críticas quanto ao procedimento equivocado da Suprema Corte, que atuou, na elaboração daquela e de outras tantas súmulas vinculantes, como verdadeiro legislador e não condensador da sua jurisprudência sobre a Constituição.

 

Nesse sentido anotamos, na mesma coluna de 26/08/2010, que “É bem verdade que, dada a relevância e a positividade dos seus comandos, e tendo em vista a inércia/omissão dos demais poderes públicos quanto ao cumprimento dos princípios constitucionais do Art. 37 e vedação efetiva da prática do nepotismo, a Súmula Vinculante nº 13 recebeu o aplauso da sociedade”.

 

O tema volta à pauta de discussões – e por isso mesmo é objeto de novo comentário – porque, na semana passada, o aparecimento de uma denúncia de prática de nepotismo no âmbito do próprio STF repercutiu na comunidade jurídica e no meio político, levando à edição de uma nota de esclarecimento oficial da Suprema Corte.

 

Na edição de 22/06/2010, o jornal Folha de São Paulo noticiou que o Presidente do STF, Ministro Cezar Peluso, “afrouxou a regra que impede o nepotismo no serviço público”, pois nomeou um casal para o STF com base no entendimento de que é legal a contratação de parentes num mesmo órgão se não houver subordinação entre eles”. Ainda segundo a mesma matéria, “José Fernando Nunes Martinez, servidor concursado da Polícia Civil de São Paulo cedido para o Supremo, assumiu a coordenadoria de segurança de instalação e transporte do tribunal, e a mulher dele, Márcia Maria Rosado, que não é servidora pública, a coordenadoria de processamento de recursos. Nos dois casos, são cargos de confiança do presidente.. A Folha de São Paulo ouviu o “outro lado”, no caso, o STF. Segundo o jornal, o porta-voz do STF, Pedro Del Picchia, disse que “Não se trata de afrouxar a regra, mas interpretá-la corretamente de modo a não prejudicar pessoas que estão fazendo o seu trabalho honestamente, cumprindo carga horária e o exercício de suas funções” e que o entendimento do Ministro Cezar Peluso é o de que “se for suscitado, o STF deve examinar a possibilidade de esclarecer aspectos da súmula para evitar uma interpretação radical”, pois “o espírito da súmula é evitar excessos e abusos que estavam de fato ocorrendo em vários órgãos do poder público. Não há nenhum paralelo entre os casos de favorecimento de parentes e situações de pessoas que estão prestando serviços qualificados no mesmo órgão e, por acaso, são parentes”.[2]

 

Pois bem, na data de 23/06/2010, o STF editou nota oficial à imprensa, com o seguinte teor:

 

Diante do noticiário da imprensa sobre ato da Presidência, já amplamente justificado, a respeito do alcance da Súmula Vinculante nº 13, relativa à questão do nepotismo, o Supremo Tribunal Federal esclarece que:

1. As justas e fundadas ponderações do então Procurador-Geral da República, dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, sobre dúvidas suscitadas pelo texto da referida Súmula, nos autos da Reclamação nº 6838, não puderam na ocasião ser ali conhecidas porque, diante da revogação do ato que a provocara, o processo ficou prejudicado e, em consequência, teve de ser extinto sem apreciação do mérito.

2. Para atender a tais ponderações e propósitos, igualmente manifestados por alguns Ministros da Corte, bem como para evitar absurdos que a interpretação superficial ou desavisada da Súmula pode ensejar, o Presidente do STF está encaminhando aos senhores Ministros proposta fundamentada de revisão da redação da mesma Súmula, para restringi-la aos casos verdadeiros de nepotismo, proibidos pela Constituição da República.

3. O teor da proposta será levado ao conhecimento da imprensa e do público, após a apreciação dos Senhores Ministros.[3]

 

Ou seja: o STF admite o fato – a nomeação de parentes (marido e esposa) para cargos em comissão no âmbito da própria Corte – mas nega que esteja aí configurada qualquer prática de nepotismo ou qualquer conduta que contrarie o enunciado da Súmula Vinculante n° 13.

 

Leia o enunciado da Súmula Vinculante n° 13 e tire as suas próprias conclusões:

 

A NOMEAÇÃO DE CÔNJUGE, COMPANHEIRO OU PARENTE EM LINHA RETA, COLATERAL OU POR AFINIDADE, ATÉ O TERCEIRO GRAU, INCLUSIVE, DA AUTORIDADE NOMEANTE OU DE SERVIDOR DA MESMA PESSOA JURÍDICA EXERCÍCIO DE CARGO EM COMISSÃO OU DE CONFIANÇA OU, AINDA, DE FUNÇÃO GRATIFICADA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA E INDIRETA EM QUALQUER DOS PODERES DA UNIÃO, DOS ESTADOS, DO DISTRITO FEDERAL E DOS MUNICÍPIOS, COMPREENDIDO O AJUSTE MEDIANTE DESIGNAÇÕES RECÍPROCAS, VIOLA A CONSTITUIÇÃO FEDERAL.


O ponto ao qual queremos chegar, porém, é outro. É certo que a Constituição Federal admite que súmula vinculante possa ser revista pelo STF (Art. 103-A, 3°: “Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade”). Todavia, a revisão de súmula vinculante deve ocorrer a partir de reiterados julgamentos sobre matéria constitucional nos quais a Suprema Corte consolide entendimento sobre a interpretação, validade e eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. No caso, não houve nenhuma decisão do STF (muito menos reiterados julgamentos) a partir da qual tenha havido uma mudança na interpretação das normas da Constituição que proíbem a prática do nepotismo. Isso (a inexistência de nova decisão do STF) é admitido na própria nota oficial à imprensa acima transcrita, na qual o STF diz expressamente que as dúvidas suscitadas pelo Procurador-Geral da República nos autos da Reclamação n° 6838 não puderam na ocasião ser ali conhecidas porque, diante da revogação do ato que a provocara, o processo ficou prejudicado e, em consequência, teve de ser extinto sem apreciação do mérito”. Também não há qualquer controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre órgãos judiciários e a administração pública acerca da Súmula Vinculante n° 13.

 

Ora, a se confirmar a proposta de revisão do texto da Súmula Vinculante n° 13, teremos uma atuação do STF motivada pela necessidade de deixar clara uma redação segunda a qual o ato praticado (de nomeação de um casal para cargos em comissão na própria Corte) não configura violação ao texto da Súmula Vinculante n° 13. Como facilmente se percebe, motivação mais do que inadequada e que macula qualquer boa intenção que a proposta possa eventualmente possuir.

 

O STF não pode, a qualquer momento que queira e bem entenda, tendo em vista achar inadequada a redação de uma súmula vinculante, rever o seu texto. Isso é atividade eminentemente legislativa, vedada ao STF. Em tema de revisão de súmula vinculante, a interpretação que resguarde o Estado Democrático de Direito é aquela segundo a qual somente será possível se decorrer de revisão da jurisprudência da Corte, gerada a partir de reiterados julgamentos sobre matéria constitucional. Só assim é juridicamente válida a edição de Súmula Vinculante, só assim é juridicamente válida a sua revisão. Edição/revisão de súmula vinculante totalmente atrelados a reiterados julgamentos sobre matéria constitucional.

 

Do contrário, ficaremos todos (cidadãos e demais poderes do estado) à mercê das vontades políticas dos Ministros do STF, que se sentirão à vontade para, a qualquer momento – independentemente de julgamentos que observem o devido processo legal, independente da jurisprudência sobre matéria constitucional que consolidem – aprovar e revisar súmulas vinculantes, efetuando leituras e releituras da Constituição segundo seus juízos de oportunidade e conveniência.

 

E aí será o caso de rememorar Montesquieu e sua máxima segundo a qual todo aquele que detém parcela de poder tende a dele abusar, se não lhe forem impostos limites. Quais serão os limites à aprovação/revisão de súmulas vinculantes pelo STF, se a própria Corte não observa a necessidade de respeitar o devido procedimento constitucionalmente estabelecido para tanto?

 

Se chegarmos lá – e não estamos longe disso – passaremos a uma nova modalidade de ditadura. Não uma ditadura militar, armada, de violência física, mas uma “ditadura institucional”[4]. Não mais uma ditadura institucional por meio de abusivas edições, pelo Presidente da República, de medidas provisórias com força de lei, mas uma ditadura institucional por meio de abusivas edições/revisões de súmulas vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal.



[1] https://.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=77105&titulo=mauriciomonteiro

[2] Assinantes da Folha de São Paulo e do UOL podem ler a íntegra da matéria acessando os seguintes links:

https://1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po2206201002.htm

https://1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po2206201003.htm

 

[3] https://.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=154947&caixaBusca=N

 

[4] A expressão aqui utilizada, “ditadura institucional”, remete ao termo “golpe de estado institucional”, cunhado por Paulo Bonavides. Golpe de Estado institucional é “muito mais devastador e funesto que aquele do modelo clássico e tradicional – sem tanques nas ruas, sem interdição dos veículos de opinião, sem fechamento das Casas do Congresso – mas que se serve justamente desses meios para coagir a Nação, anestesiar a sociedade, paralisar-lhe os nervos, calar a reação popular e sufocar a consciência do País. O golpe de Estado institucional, ao contrário do golpe de Estado governamental, não remove governos, mas regimes, não entende com pessoas, mas com valores, não busca direitos mas privilégios, não invade Poderes mas os domina por cooptação de seus titulares; tudo obra em discreto silêncio, na clandestinidade, e não ousa vir a público declarar suas intenções, que vão fluindo de medidas provisórias, privatizações, variações de política cambial, arrocho de salários, opressão tributária, favorecimento escandaloso da casta de banqueiros, desemprego, domínio da mídia, desmoralização social da classe média, minada desde as bases, submissão passiva a organismos internacionais, desmantelamento de sindicatos, perseguição de servidores públicos, recessão, seguindo, assim, à risca, receita prescrita pelo neoliberalismo globalizador, até a perda total da identidade nacional e a redução do País ao status de colônia, numa marcha sem retorno” (BONAVIDES, Paulo. Do País Constitucional ao País Neocolonial – A derrubada da constituição e a recolonização pelo golpe de Estado institucional. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 23).

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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