A nova interpretação do § 6° do Art. 62 da Constituição

Na última sexta-feira (27/03/2009), o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, em decisão monocrática, ressaltou:

 

“Na realidade, a deliberação ora questionada busca reequilibrar as relações institucionais entre a Presidência da República e o Congresso Nacional, fazendo-o mediante interpretação que destaca o caráter fundamental que assume, em nossa organização política, o princípio da divisão funcional do poder (…)

A interpretação dada pelo Senhor Presidente da Câmara dos Deputados ao § 6º do art. 62 da Constituição da República, ao contrário, apoiada em estrita construção de ordem jurídica, cujos fundamentos repousam no postulado da separação de poderes, teria, aparentemente, a virtude de fazer instaurar, no âmbito da Câmara dos Deputados, verdadeira práxis libertadora do desempenho, por essa Casa do Congresso Nacional, da função primária que, histórica e institucionalmente, sempre lhe pertenceu: a função de legislar” (grifos no original).

 

O caso

 

Para entender bem o caso: a norma do § 6º do Art. 62 da Constituição Federal estabelece expressamente que “Se a medida provisória não for apreciada em até quarenta e cinco dias contados de sua publicação entrará em regime de urgência, subseqüentemente, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando”.

 

No transcurso de determinada sessão, respondendo a questão de ordem formulada pelo Deputado Regis de Oliveira, o Presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, aduziu uma reforma da interpretação sobre quais espécies de deliberações legislativas ficam sobrestadas, até que se ultime a votação da medida provisória não apreciada em até quarenta e cinco dias contados de sua publicação: somente os projetos de lei ordinária que tenham por objeto matéria passível de regulamentação por meio de medida provisória. Portanto, não estariam sujeitas ao sobrestamento as propostas de emenda à constituição, projetos de lei complementar, decretos legislativos e resoluções. Além disso, as medidas provisórias não apreciadas no prazo de quarenta e cinco dias somente continuarão sobrestando as deliberações em sessões legislativas ordinárias, não incidindo sobre as sessões legislativas extraordinárias.

 

Insatisfeitos com essa nova interpretação ao dispositivo do § 6º do Art. 62 da Carta Política, os Deputados Fernando Coruja, Ronaldo Caiado e José Aníbal propuseram mandado de segurança no STF, autuado como MS n° 27.931-1 e distribuído à relatoria do Ministro Celso de Mello, que rejeitou o pedido de concessão de medida liminar para

 

 

As origens político-legislativas do § 6° do Art. 62

 

 

A melhor compreensão da controvérsia, que permita efetuar uma análise crítica do problema, exige a pesquisa da origem da norma que consta do § 6º do Art. 62 da Constituição.

 

É de se notar que essa norma não constava da redação original, tendo sido inserida pela emenda constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001 (emenda que, como um todo, foi uma primeira reação mais efetiva do Congresso Nacional aos constantes abusos praticados pelos sucessivos Presidentes da República na edição de medidas provisórias).

 

Previstas na Constituição para serem adotadas pelo Presidente da República em casos de relevância e urgência, as medidas provisórias deveriam ser instrumentos da atividade legislativa excepcional do Poder Executivo (eis que a atividade legislativa é precípua do Poder Legislativo), em situações tais em que a destacada importância da matéria e a impossibilidade de espera pela tramitação regular de um projeto de lei no Congresso Nacional justificassem a sua adoção.[1]

 

O abuso na edição e reedição cotidiana de medidas provisórias desprovidas de urgência ou relevância ou de ambos, pelos sucessivos Presidentes da República, fizeram do Poder Executivo o ator político legislativo por excelência, caracterizando usurpação da função legislativa pelo Presidente da República, em prejuízo ao princípio da separação de poderes (“Art. 2º. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”; Art. 60 (…) § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (…) III – a separação dos Poderes;”) e ao próprio Estado Democrático de Direito em que se constitui a República Federativa do Brasil (Art. 1º).

 

Daí porque, em 2001, o Congresso Nacional resolveu aprovar a emenda constitucional n° 32, que, modificando a redação do Art. 62 e nele inserindo diversos parágrafos (antes só havia um), procurou impor limites àqueles abusos que, então, já haviam se tornado parte da crônica política brasileira (tais abusos, não obstante a emenda 32, lamentavelmente continuam até os dias presentes).

 

Entre as novidades introduzidas pela emenda 32 ao regime jurídico-constitucional das medidas provisórias, destacam-se: a) a expressa previsão de limites materiais à edição de medidas provisórias, ou seja, o elenco explícito de matérias as quais, ainda que presentes os pressupostos da urgência e da relevância, não admitirão regulamentação por meio de medida provisória; b) mudança do prazo de eficácia da medida provisória, de trinta dias para sessenta dias, prorrogáveis uma vez por igual período (não se computando nesse prazo os dias de recesso parlamentar), o que significa dizer que, na prática, essa mudança passou de trinta para cento e vinte dias; c) a expressa proibição de reedição, na mesma sessão legislativa (ano legislativo), de medida provisória que tenha sido rejeitada ou perdido a eficácia por decurso do prazo sem apreciação do Congresso Nacional; d) a imposição de um regime de tramitação legislativa da medida provisória, no qual foi inserida a norma do § 6º do Art. 62.

 

Quais os motivos inspiradores da introdução desse novo regramento?

 

Os abusos dos Presidentes da República não se limitavam apenas à edição de medidas provisórias desprovidas dos pressupostos da urgência e relevância, mas na reedição, de trinta em trinta dias, de medida provisória não apreciada pelo Congresso Nacional. Isso não obstante o fato de que a norma do antigo parágrafo único do Art. 62 dispunha expressamente que perderiam a eficácia as medidas provisórias não convertidas em lei no prazo de trinta dias. Contudo, o próprio Congresso Nacional quedou inerte diante da prática reiterada de reedições sucessivas de medidas provisórias, que acabou referendada pelo Supremo Tribunal Federal.

 

Assim, alegando que o prazo de trinta dias era inviável para a apreciação da medida provisória, com o que sempre haveria a sua não apreciação, ensejando essa conduta nociva da reedição sucessiva da mesma medida provisória de trinta em trinta dias, o Congresso Nacional, por via da emenda 32, dilatou esse prazo para cento e vinte dias. Considerou que, em cento e vinte dias, haveria prazo suficiente para deliberação sobre a medida provisória, evitando o transcurso do prazo sem votação da matéria. Noutras palavras: o Congresso Nacional, como órgão titular precípuo da função legislativa, não deixaria de se manifestar expressamente sobre a conversão da medida provisória em lei permanente (ainda que com eventuais modificações) ou sobre a sua rejeição. Restaurada estaria a sua preponderância (em relação do Poder Executivo) no exercício da função legislativa. Todavia, o próprio Congresso Nacional entendeu que a simples dilação do prazo não seria garantia de apreciação expressa da medida provisória. Por isso que instituiu a norma do § 6°, como forma de ser forçado a deliberar sobre a medida provisória dentro do prazo de cento e vinte dias, sob pena de ter a sua pauta trancada, impedido de votar “as demais deliberações legislativas”, até apreciar a medida provisória. A norma do § 6º do Art. 62, portanto, foi concebida como mecanismo garantidor da explícita apreciação da medida provisória dentro do seu prazo de eficácia (cento de vinte dias) e legitimador da proibição da sua reedição na mesma sessão legislativa em caso de sua não conversão em lei nesse mesmo prazo.

 

Também cabe considerar que, tanto na redação original quanto na redação conferida pela emenda 32, foi prevista a perda da eficácia, desde a edição, em caso de não conversão da medida provisória em lei dentro do seu prazo de eficácia. É dizer: se por alguma razão, o Congresso Nacional deixa ultrapassar o prazo de eficácia da medida provisória sem sua explícita manifestação de vontade (quanto à sua conversão, ou não, em lei), a medida provisória, que vigorou durante certo período com força de lei, perde retroativamente essa eficácia de lei, cabendo ao Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas dela decorrentes. Perdeu a eficácia desde a edição, é como se nunca tivesse existido, mas existiu, com força de lei, serviu de base normativa para a celebração – de boa-fé – de negócios jurídicos. Cabe ao próprio Congresso Nacional resolver a situação, para o fim de evitar traumas à segurança jurídica. Muito melhor, porém, é evitar que isso ocorra (a perda retroativa de eficácia da medida provisória por decurso de prazo sem apreciação). Também com essa finalidade é que foi inserida a norma do § 6° do Art. 62: entre 45 e 120 dias, haverá aí um período em que a Casa Legislativa se verá forçada a apreciar expressamente a matéria, sob pena de ficar interditada em seu trabalho legislativo independente, cabendo tão somente a ela livrar-se do problema e restaurar a sua plena liberdade de deliberação autônoma, votando a medida provisória em questão.

 

 

O acúmulo de medidas provisórias sobrestando a pauta das Casas Legislativas

 

 

É verdade, porém, que após quase oito anos de vigência e aplicabilidade do comando do § 6° do Art. 62 da Constituição (emenda 32/2001), a experiência revelou que a mencionada norma serviu para atravancar os trabalhos legislativos, fazendo do Presidente da República o controlador da agenda de deliberações do Congresso Nacional.

 

Isso porque, tendo em vista a enxurrada de medidas provisórias (a maioria das quais desprovidas dos pressupostos constitucionais de urgência e relevância), quando a Casa Legislativa consegue “limpar” a pauta, votando medida provisória editada há mais de 45 dias, logo outra medida “tranca” a sua pauta, por ultrapassar o prazo de 45 dias de sua edição, e assim por diante, sucessivamente. Desse modo, a Casa Legislativa fica impedida de apreciar outras matérias, servindo quase que exclusivamente para aprovar ou rejeitar medidas provisórias editadas pelo Presidente da República.

 

 

A “restauração do equilíbrio entre os poderes” por via de reinterpretação do § 6º do Art. 62

 

 

É nesse contexto de preocupação com o resgate do equilíbrio entre os poderes que o Presidente da Câmara dos Deputados adota nova interpretação do § 6° do Art. 62, de modo a fazer incidir o trancamento da pauta apenas em relação a projetos de lei ordinária em matéria que possa ser regulamentada por medida provisória, permitindo a apreciação, pela Casa Legislativa, de outras proposições. Com esse procedimento, restaura-se o equilíbrio entre os poderes, resgata-se a plena autonomia do Poder Legislativo em decidir sobre o que deve deliberar e de organizar, com independência, a sua agenda de votações.

 

A nova interpretação do § 6º do Art. 62 foi saudada pelo Ministro Celso de Mello como verdadeira práxis libertadora do desempenho, por essa Casa do Congresso Nacional, da função primária que, histórica e institucionalmente, sempre lhe pertenceu: a função de legislar” (grifos no original).

 

 

A previsível perda de eficácia de medidas provisórias por decurso de prazo sem apreciação

 

 

Não é exercício de futurologia. É análise de prognósticos, tendo em vista o histórico de atuação do Congresso Nacional. Com a interpretação até aqui aplicada ao § 6° do Art. 62, em pouquíssimas vezes uma medida provisória perdeu a eficácia por decurso do prazo de 120 dias sem apreciação explícita do Congresso Nacional. Na maioria dos casos houve aprovação integral (com conversão em lei), modificação de parte do conteúdo na conversão em lei ou rejeição expressa da medida provisória.

 

Essa “interpretação emancipatória” do § 6° do Art. 62, porém, deve produzir a seguinte conseqüência: a Câmara dos Deputados, liberta do instrumento de coerção para expressa apreciação da medida provisória após 45 dias de sua edição, livre para poder votar outras matérias, deixará transcorrer o prazo fatal de 120 dias sem deliberação, com o que a medida provisória perderá a eficácia, desde a sua edição, com todas as conseqüências gravosas à segurança jurídica já expostas anteriormente. E, o que é mais grave, sem que esse agravo à segurança jurídica decorra de manifesta vontade política, mas sim do puro silêncio ou omissão.

 

 

Havia (ou há) alternativas?

 

 

Por derradeiro, questiona-se: havia (ou há) alternativas consistentes para restaurar o equilíbrio entre os poderes, contendo o abuso do Presidente da República (quem quer que o seja), contumaz usurpador da função de legislar?

 

Sim. Basta que o Congresso Nacional passe a adotar a prática – já admitida pela Constituição – de rejeitar de imediato, sem apreciação do mérito, as medidas provisórias que não preencham os pressupostos constitucionais da urgência e relevância (Art. 62, § 5°: “A deliberação de cada uma das Casas do Congresso Nacional sobre o mérito das medidas provisórias dependerá de juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais”). Assim, não haverá enxurrada de medidas provisórias trancando a pauta, mantida a interpretação anterior do § 6° do Art. 62.

 

Ou então que o Congresso Nacional aprove emenda constitucional que realmente limite o uso de medidas provisórias a situações estritamente indispensáveis (por exemplo, para abertura de crédito extraordinário no caso de despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública).

 

E finalmente, se o Congresso Nacional nada disso fizer, o Supremo Tribunal Federal, quando chamado a tanto, poderia, por via de interpretação realmente libertária, declarar a inconstitucionalidade de diversas medidas provisórias desprovidas de seus pressupostos essenciais caracterizadores de sua excepcionalidade, que são a urgência e a relevância.

 

Dessa forma, não haveria trancamento de pauta. Não haveria excesso de medidas provisórias. Não haveria controle, pelo Presidente da República, da agenda de deliberações legislativas. Isso sem qualquer prejuízo à segurança jurídica.



[1] “Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submete-las de imediato ao Congresso Nacional” (com redação conferida pela emenda constitucional nº 32/2001).

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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