A primavera dos povos árabes

A primavera dos povos árabes

Marcos Cardoso

“Os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes: a primeira como tragédia, a segunda como farsa.” – Karl Marx

A civilização árabe estaria um século e meio atrasada em relação à européia? O abandono à passividade e a demonstração de força e vontade política observadas agora lembram a onda revolucionária européia de 1848, a chamada “Primavera dos Povos”, que sacudiu França, Itália, Prússia, Áustria, Hungria, Dinamarca e outras nações. Teve efeito prático aparentemente pequeno, mas as ambições populares despertadas pelas revoltas não puderam mais ser ignoradas, levando, no médio prazo, à autonomia da Hungria e à unificação da Itália e da Alemanha e, no longo, redesenharam o mapa do continente. “Os impulsos nacionalistas, democráticos e socialistas despertados naquela ocasião pautaram a história da Europa e do mundo por gerações”, como bem diz Antonio Luiz M. C. Costa, editor de internacional da revista Carta Capital.

A Primavera dos Povos eclodiu em função de regimes governamentais autocráticos, de crises econômicas, de falta de representação política das classes médias e do nacionalismo despertado nas minorias da Europa central e oriental, que abalaram as monarquias da Europa, onde tinham fracassado as tentativas de reformas políticas e econômicas. Alguma semelhança com a onda revolucionária árabe? Uma diferença é que as revoluções de 1848, também de caráter liberal, democrático e nacionalista, foram iniciadas por membros da burguesia e da nobreza que exigiam governos constitucionais, e por trabalhadores e camponeses que se rebelaram contra os excessos e a difusão das práticas capitalistas.

A revolução irrompeu primeiramente na França, onde adeptos do sufgrágio universal e uma minoria socialista conseguiram derrubar a monarquia de Luís Filipe I e criaram a Segunda República. “Naquela época, os cafés que assinavam jornais e serviam de ponto de encontro para discutir ideias políticas eram o que havia de mais parecido com uma rede social, mas existia o mesmo entusiasmo por auto-determinação, a mesma falta de lideranças e de objetivos claros e a mesma ansiedade das mais diferentes tendências políticas e ideológicas por interpretar, cooptar e dirigir o movimento”, interpreta o articulista da Carta Capital, estabelecendo uma comparação com a “revolução do Facebook”.

E, lá como aqui, não bastou derrubar um regime. Na Tunísia, estopim da “primavera dos povos árabes” (apesar de que no hemisfério norte ainda é inverno), os revolucionários não se contentaram em derrubar o tirano Ben Ali, expulsaram também o vice-ditador que se apresentava como mediador e caminham para realizar eleições livres. No Egito a tutela militar pós-queda de Mubarak tem questionada a sua permanência (aparentemente) temporária no poder. Enquanto isso, as monarquias da região fazem concessões para se manterem intocadas. Até quando, ninguém sabe.

Pois na França de 1848, o povo quis no poder um “aventureiro”, Luís Napoleão Bonaparte, sobrinho de Napoleão Bonaparte, que se apresentava como mantedor da ordem e tinha sobrenome conhecido e respeitado por milhões de franceses. Os operários de Paris votaram nele contra as forças militares que os oprimiram e os camponeses também o fizeram em homenagem ao tio, que havia garantido suas propriedades quando o clero e a nobreza ameaçavam retomá-las. Assim, Luís Napoleão foi eleito com ampla maioria dos votos.

O mandato do presidente francês era de quatro anos e a Constituição proibia a reeleição. Em 1852, ele teria que deixar o poder, o que não era sua intenção. Com o mesmo apoio popular, Luís Napoleão articulou um golpe de Estado que acabaria com a república e o tornaria imperador. Queria reeditar o feito do tio, que, com o golpe do 18 de Brumário, acabou com a Primeira República Francesa e criou o império napoleônico. Com o seu golpe, Luís Bonaparte criou o Segundo Império Francês e tornou-se o imperador Napoleão III.

Por ironia, Karl Marx, pensador socialista, apelidou o golpe do sobrinho de o 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Diz Marx: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa”.

Então o que acontece agora no mundo árabe seria a farsa da farsa?

O que é verossímil é a consolidação do pan-arabismo. Não por força das mídias sociais, mas que floreceu à sobra da rejeição ao inimigo externo, materializado no imperialismo americano, que é anterior às invasões iraquiana e afegã, mas que ganhou musculatura com essa intromissão em assuntos, diga-se, internos. E quem merece mais crédito, por expor e até antecipar os acontecimentos, com suas coberturas agressivas e independentes dos problemas internos e externos dos países da região, e por dar voz aos intelectuais que estão construindo a nova identidade árabe – assim como a imprensa e os escritores europeus do século XIX -, é a rede Al-Jazira, do Catar.

A Al-Jazira “foi a primeira expressão global autônmoma da opinião da sociedade civil árabe, desde o momento em que surgiu para o mundo com suas coberturas alternativas das invasões estadunideneses do Afeganistão e do Iraque. Tão incisivas que nos EUA houve quem quisesse tirá-la do ar como ‘combatente inimigo’”, recorda o articulista cartista.

Com sua ampla audiência na maioria dos países da região, reforçada pela audiência de outras redes concorrentes locais, a Al-Jazira molda o discurso islâmico e a identidade muçulmana – as pessoas já se identificam assim mais do que como nacionais de algum dos países. E essa identidade e discurso tendem a dominar a cena árabe. Realidade que a sensibilidade americana não dá nenhum sinal de perceber.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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