A SURDEZ DA DEUSA

A deusa grega Themis, também chamada de Justitia pelos romanos, era filha de Urano e Gaia, sendo considerada a personificação da Ordem e do Direito divinos, ratificados pelo Costume e pela Lei. Era  invocada por todos aqueles que se sentiam injustiçados, oprimidos ou indefesos  diante dos poderosos de então.  Tornou-se, com este currículo, a Deusa da Justiça, ainda mais quando impressionava a sua austeridade, bem representada no fato de que se apresentava com os olhos vendados e segurando uma balança e uma cornucópia.

É bom que se diga que Themis não vendava os seus próprios olhos por capricho, marketing religioso ou simples prazer masoquista.  Ao contrário, assim agia por deliberado querer funcional, pois, não enxergando a aparência física, patrimonial ou intelectual dos suplicantes, poderia melhor julgar e aplicar a Justiça requerida. É escrever em outras palavras: não olhando “o quem”  postulava, seria mais justa e sensível para escutar “o que”  se buscava. 

 

Assim, não poderia  surpreender a constatação de que a deusa Themis  tenha se tornado uma verdadeira popstar da humanidade.  Sobrevivente aos caprichos  implacáveis do tempo,  inclusive assistindo de camarote a derrocada da própria mitologia grega que a revelou para o mundo. Basta constatar que Themis foi presença cativa em vários episódios que deixaram marcas profundas na História,  mesmo porque não se pode  falar em igualdade, liberdade e fraternidade sem  clamar por Justiça.


Aliás, o seu deslumbrante charme continua conquistando a devoção de todos os povos do planeta, mesmo os ateus e aqueles que professam e acreditam no monoteísmo, fundamentalistas ou não. Mantém-se intacta a sua invocação nos conflitos religiosos e laicos que abundam o planeta, tornando-a uma das atrações principais das lutas ou movimentos reivindicatórios implementados pela humanidade. Neste contexto, torna-se evidente que os brasileiros também se transformaram em grandes adoradores da deusa Themis, talvez até seus devotos mais fieis.

 

Não porque aqui o sincretismo religioso tem altar garantido, sempre se abrindo espaço para um novo santo, espírito encarnado ou entidade. Mas, sobretudo, porque aqui secularmente se pratica o “Culto da Desigualdade Social”, adversário ferrenho do “Culto à Justitia“. E como são incompatíveis ambos os cultos, os “conflitos religiosos” afloram de forma claramente perceptível, assim como a  legião de ativos sacerdotes, devotos e súplicas.

 

Escuta-se, por aqui, o lamento aflito dos pobres, “pretos” e prostitutas, os famosos 3P que lotam as delegacias e presídios brasileiros, esperando que Themis vença o embate.  Rezam para ela os trabalhadores, os desempregados e os aposentados para que se torne vitoriosa a compreensão de  que nasceram para viver com dignidade, e não apenas considerados para fins de custos de produção, estatísticas sociais ou dispêndio orçamentário. Torcem também os camponeses, os  falidos, os excluídos, os abandonados e os que não têm moradia, todos esperançosos de que suas vidas mudarão depois da batalha. 

 

Aliás, diante de tantas súplicas, também é fácil concluir que a deusa Themis possui vários adversários ferozes, combatentes que lutam para que sejam decretadas a sua mortalidade, excomunhão ou cooptação.  Diariamente atacam o seu culto, corrompem sacerdotes, desmoralizam os seus templos, ameaçam devotos e espalham que ela desistiu da própria santidade. Gostam de dizer que trocara a cura da cegueira que a impedia de enxergar “o quem”, sem qualquer remorso, por uma surdez que torna inaudível “o que” se postula.

 

Não é sem motivo, portanto, que buscam desmoralizar ou enfraquecer o Poder Judiciário, tornando-o moroso e sem estrutura suficiente para atender às orações da cidadania.  Não é à toa que detestam os advogados, pois sabem que são eles os principais encarregados de defender os que clamam pela Justiça. Não é por ingenuidade que lutam para cassar a voz daquele que sopra ao ouvido da Justitia o canto da esperança de que a guerra será vencida.

 

Eis porque se busca, cada vez mais insistentemente, retirar ou impedir que os advogados freqüentem os seus templos, inclusive edificando-se trincheiras, tapumes e barreiras que impedem o livre-falar.  Eis porque não mais desejam a presença de advogados nas causas que envolvem os trabalhadores, aposentados, excluídos, abandonados e violentados, a exemplo dos Juizados Especiais. Eis porque os adversários de Themis a querem cega e surda, pois sabem que somente assim poderão fácil e definitivamente derrotá-la.

 

* Cezar Britto, é advogado e secretário-Geral da OAB

cezarbritto@infonet.com.br

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