A versão século vinte e um da “velha escola”

Clotildes Farias de Sousa

Doutora em Educação/UFS

Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/UFS)

E-mail: clotildesfs@gmail.com

 

Fonte: Educação à distância. Foto:Marcos Santos/USP Imagens, 2011. Disponível em: http://imagens.usp.br/?p=10970

Antes de completar quatro meses de paralisação, a escola pública sergipana reagiu à inércia provocada pelo Sars-Cov-19, ao promover, em vários níveis de ensino, o funcionamento “educacional a distância”. No momento atual, regulamentos, instruções, cursos de formação para professor, atividades de pesquisa, ensino e extensão, programas e aulas remotas respondem aos desafios escolares impostos pelo vírus gripal.

Reconheçamos que essa mobilidade ultrapassa o debate virtual polarizado “pró ou contra” educação (a distância). Entre outras pendências e incertezas, as instituições contrapuseram-se à experiência in vitro da audiência a que assiste imparcial, perplexa ao hic et nunc – através das telas de cristal líquido e diodos emissores. Nos reclames sociais, é possível mesmo que pessoas mais críticas sejam razoáveis em resposta às soluções oferecidas à educação pública – nessa fase de pandemia. Assim, há quem aceite bem o funcionamento da rede particular de ensino, quando se trata de educar os próprios filhos. O fato é que Sergipe participa do movimento atual de “escolarização a distância”, parcialmente narrado neste texto: movimento histórico do ponto de vista da teoria e prática pedagógicas.

Educar a distância é “escolarizar”. Há cem anos, ‘escolarizar’, no Brasil, significava reunir, em um só lugar, mais de vinte três milhões de analfabetos, do saldo de trinta milhões de habitantes. A inventiva era para convencê-los da importância de aprender a ler, escrever, contar. E acima de tudo, e de todos, tornar-se cidadão. Era dispor de professor instruído na cultura letrada e pedagógica da época para dar conta daquele compromisso educacional na sala de aula recém-inaugurada. Escolarizar significava “ensinar presencialmente” os saberes e deveres necessários para formar certa Nação brasileira, mediante exposição oral de conteúdos, e uso das grandes tecnologias da época: pena, tinta, papel e lousa. Variações históricas à parte, essa fórmula secular de ensinar prevaleceu como sinônimo de escola até que o mais novo surto viral alterasse o status quo da educação no mundo. O Coronavírus expandiu o risco de contaminação, gerou distanciamentos sociais e culturais jamais assistidos pela humanidade do século vinte e um. A escola dispersou-se com reações imediatas. O termo “a distância” tornou-se então a via escolar, por excelência e amplitude, em 2020. Assim, esse acontecimento faz o planeta ingressar um movimento inverso ao passado na educação brasileira.

No contexto dos esforços para conter a virose, a “escola distanciada” altera o modus operandi no intuito de preservar seu lugar social de principal instituição formadora da modernidade, sem prejudicar o saber-fazer alcançado na longa trajetória histórica. Hoje, “atividades educativas remotas” e “ensino remoto” são termos empregados como sinônimos ao “ensino presencial”, na tentativa de distinção dos modos escolares “a distância”. Consequentemente, a fórmula escolar costumeira dos estudantes, alterada pelas novas disposições do tempo-espaço, estaria preservada das ameaças do futuro incerto da educação brasileira; bem como de todo o resto. Agora, a regra que temos de aprender é a “ficar em casa” e, se possível, manter uma rotina de estudos no ambiente doméstico mediante processos e dispositivos tecnológicos de informação, e comunicação, apropriados pelos professores. Em home office, também, os professores usam recursos comuns do dia a dia: celulares, computadores e notebooks com aplicativos interligados a Internet que, mesmo antes da pandemia, eram utilizados como procedimentos e práticas escolarizadas. Subitamente, pelos recursos midiáticos hodiernos explica-se a educação escolar dos últimos meses, como se os meios educacionais empregados fossem a única ou principal razão da “educação a distância”.

E a história educacional brasileira do tempo presente recebe a ordem de suspensão temporária das ações presenciais, e de aplicação emergencial de formas não convencionais na educação escolar. Adeptos e antagonistas da educação a distância podem enxergar, além das janelas de vidro, a escola do século vinte e um: a velha instituição, apesar de rejuvenescida pelas novidades tecnológicas do tempo.

Concretizada no espaço-tempo virtual, a escola ainda é lugar subjetivo ocupado por “[…] signos, símbolos e vestígios da condição das relações sociais de entre aqueles que o habitam”, segundo o pesquisador Antônio Viñao Frago (2001, p. 64). Além-muros, a instituição escolar mantém-se firme na transmissão de conhecimentos organizados em conteúdos, currículos, disciplinas, métodos e materiais. Agrupada, porém dividida em classes de alunos com níveis de conhecimentos e competências similares, e submetidos às avaliações regulares do professor que ensina coisas idênticas. Mudando apenas de sala. Simultaneamente. Voltada à difusão da cultura racionalizada nos lares em que adentra, a nova escola disciplina a intimidade do espaço-tempo privado (de lazer, trabalho e estudo). É a versão século vinte um da “velha escola” sob a forma de educação a distância, mas contrária à “febre metodológica” que prejudica a consciência dos fins educacionais.

Digamos que a escolarização a distância resiste aos abalos do Sars-Cov-19, mantendo vivo o compromisso com a socialização da ciência e disseminação dos princípios de liberdade e ideais de solidariedade humana previstos em lei, não obstante as limitações de alcance da cultura em um mundo doente. E afinal, como bem diz a pesquisadora Clarisse Nunes: “A escola risonha e franca tinha também o seu lado sombrio.” (1996, p. 155-224).

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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