Não consigo esquecer uma certa piada que um dia me contaram, embora a tenha gravado em minha memória pelo seu conteúdo mais sério e reflexivo. Fora-me contado, com os enfeites e trejeitos dignos de um humorista improvisado, que dois idealistas conversavam diante de uma revolucionária mesa de bar, quando, para não perder o costume, começaram a filosofar sobre a importância da solidariedade na construção de um mundo melhor. Lá para as tantas, um dos utópicos começou a exemplificar a necessidade do desapego no que se refere às coisas materiais, passando a afirmar que repartiria com o seu companheiro todos os bens que porventura tivesse em duplicidade, inclusive aviões, navios, automóveis, casas, motos ou qualquer outro objeto material de relevante valor econômico.
Na sua extensa contabilidade de repartição solidária, somente excepcionou duas camisas, reafirmando que estas não seriam divididas em hipótese alguma. É evidente que o inusitado da recusa provocou a reação do seu companheiro, que não entendeu a lógica socializante do seu amigo, até porque era mesmo estranho dividir os bens de grande monta, conservando-se a propriedade privada tão-somente sobre duas pobres e insignificantes camisas. Mas explicação não tardou, esclareceu o filósofo da solidariedade que as duas camisas não seriam divididas por uma única razão; é que as camisas ele tinha em sua propriedade, enquanto os demais bens eram apenas sonhos de consumo.
Esta narrativa, infelizmente, tem um conteúdo real que não pode apenas ficar no elástico elenco da comédia, embora o humor tenha o importante papel de amenizar as tragédias do mundo. Realmente a narrativa externa o péssimo vício de sermos corretos, atuantes e corajosos apenas no mundo dos sonhos e dos projetos, perdendo toda nossa valentia ou ousadia quando somos convidados a acordar ou agir. É como se a utopia que nos servia de guia e luz, abalizando e firmando o nosso amor próprio, repentinamente perdesse o gostoso sabor da conquista quando despida pela visão e possibilidade do acasalamento.
Talvez a piada aqui narrada não seja suficiente para nos convencer da nossa própria inércia social, mesmo porque muitos não têm sequer duas camisas para dividir. Então vamos a uma outra questão: você achou correta a invasão estadunidense no Iraque, comandada pelo insensível General Bush, usando as mais modernas e perfeitas armas de destruição da vida humana? Você acha correto que um país resolva as suas querelas e caprichos através de bombardeios, arrasamento de lares, extermínio de esperanças e assassinato da paz mundial.
É evidente que não, pois, como demonstram as mais amplas pesquisas sobre a Invasão do Iraque, o mundo efetivamente condenou o uso unilateral e arrogante de arma destrutiva da vida como solução dos conflitos internacionais. Nós, os brasileiros, longe do conflito que nos é apresentado através das antenas da tv, fomos e continuamos sendo os mais críticos da postura estadunidense, como bem refletiu o presidente Lula em recente discurso na ONU. Os argumentos do General Bush, principal garoto propaganda da forte indústria de armamentos de guerra, não foram suficientes para convencer ao mundo de que a violência pode ser uma forma de prevenir a própria violência.
No nosso mundo particular, ou melhor escrevendo, nosso próprio quintal, as armas de fogo são igualmente destrutivas, pois, segundo dados da ONG VIVA RIO, elas são responsáveis pelo aumento da violência urbana, não cumprindo a sua proposta preventiva. Ao contrário, são as armas legalizadas quem abastecem, quando roubadas ou perdidas, um terço do potencial bélico dos criminosos brasileiros. E não estamos falando da violência no campo, onde se constata a formação de verdadeiros e incontroláveis exércitos privados.
Eis outros dados publicados pela VIVA RIO: o risco do morrer por arma de fogo no Brasil é quatro vezes maior do que nos demais países; em dois anos elas vitimaram mais brasileiros do que os soldados estadunidenses na guerra do Vietnã; os que usam armas de fogo têm 56% mais chance de serem assassinados; 30% das despesas e emergências hospitalares são motivadas pelo uso destes instrumentos letais; são responsáveis, na cidade do Rio, por 65% das mortes de jovens do sexo masculino, superando os acidentes de carro, as doenças e causas naturais. E o que é mais grave, as armas de fogos trazem violência para a família, pois aumentam exageradamente o risco de homicídio inter-familiar (2,7 vezes), os acidentes (4 vezes) e os suicídios (11 vezes). Não se pode esquecer que quase metade dos homicídios é cometida por pessoas sem histórico criminal, vários deles por mera briga de amigos ou vizinhos.
O uso das armas destrutivas que condenamos no distante Iraque, mas que também são usadas para matar nossos vizinhos, tem a mesma lógica defendida pelo idealista da piada que escutei. Quando as armas que matam são as nossas, não as deles, adquirem a forma de camisas difíceis de descartar. E como a vida é um assunto é sério, só uma palavra de ordem é possível socializar: DESARMAMENTO JÁ.
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(*) Cezar Brito é advogado, conselheiro Federal da OAB e presidente da Sociedade Semear.
cezarbritto@infonet.com.br