Tão-logo terminou o Pan-Americano de São Domingos, entrou em competição o velho e predileto esporte dos palpiteiros da vida e das coisas do mundo, ou melhor escrevendo, foi aberta a Temporada do Arremesso dos Especialistas em Pitacos. A primeira contenda era apontar, com argumentos precisos e lógicos, quem venceu ou foi o maior destaque do Pan. É claro que as opiniões foram as mais dispares possíveis, mesmo porque é muito difícil escolher apenas um medalhista, quando vários foram os personagens ou fatos em disputa pelo lugar mais honroso.
Alguns, talvez por serem campeões em enxergar defeitos em tudo, apontaram as falhas e desorganização de São Domingos como medalha de ouro da competição, não servindo como atenuante o fato de que o país que abrigou a competição é exageradamente pobre e explorado, vitimado pelos grandes impérios exploradores, desde a Espanha até os EUA. Outros, acreditando que a competitividade é a razão de ser de toda e qualquer disputa esportiva, apontaram como vencedores os homens e as mulheres que ganharam e disputaram as medalhas, escolhendo aquele que foi mais forte ou veloz. As seleções de handebol, basquete, futebol feminino, ginástica, dentre outros esportes coletivos, também mereceram destaque na acirrada disputa, especialmente as que venceram.
Vários, inicialmente eu também incluído neste rol, apontaram Cuba como grande vencedora da competição, pois é realmente notável perceber que uma pequena e pobre ilha perdida no Caribe, boicotada pelo mundo por mais de quarenta anos, consegue ser competitiva e altamente vitoriosa. E olhe que a pequena Cuba superou em medalhas os imensos e poderosos Canadá, Brasil, México e Argentina. E se formos compará-la com os demais países latinos, irmãos em história e em exploração, estaremos cometendo uma imensa covardia, pois muitos deles sequer ganharam medalha de ouro em toda a sua vida.
Entretanto, fui convencido de que Cuba merecia obter a medalha de bronze no meu júri particular, pois não conseguiu vencer o elemento emotivo que explodia no rosto dos competidores, mesmo os que não recebiam medalhas, demonstrando que superaram dramas e obstáculos pessoais até então intransponíveis ou inimagináveis. Quando, emocionados, dedicavam as suas respectivas vitórias à alguém, se percebia que também estavam realizando os sonhos pessoais daqueles que acreditam neles, fazendo a América acreditar que o amor é um sonho perfeitamente possível. E mesmo quando oriundos de países que não apostaram em seus talentos, ainda assim demonstravam orgulho por estarem representando o seu povo, fazendo tremular no alto do pódio a bandeira e o hino de seu país.
Mas a medalha de ouro, infelizmente para o mundo, recaiu na interminável questão política que teima jogar no campo invisível da propaganda ideológica dos dois grandes adversários americanos. Para os EUA e para Cuba não estavam em jogo apenas as ousadias dos seus atletas, mas sim que estão absolutamente corretos em seus respectivos “estilos de pensar o mundo”, tanto assim que foram os dois únicos países que obtiveram mais medalhas de ouro do que de prata ou bronze. Para os EUA os jogos servem para confirmar que são genética e tecnologicamente superiores aos seus subordinados países, enquanto Cuba demonstra que a sua resistência é correta, inclusive para justificar a injustificável ausência de liberdade política.
É bem verdade que no mundo competitivo dos esportes a propaganda ideológica tem potencial ofensivo limitado, sendo, inclusive, controlado por árbitros e tribunais esportivos. Mas esta não é a questão central, o problema é saber que a propaganda ideológica praticada no mundo dos esportes, especialmente aquela que estrategicamente ressalta a superioridade dos EUA, repercute mortal e perigosamente nas demais atividades humanas, fomentando outras e mais graves disputas internacionais. E o que é pior, no campo irracional destas concretas guerras, os belicosos combatentes não respeitam os juizes ou qualquer regra ética a abalizar a disputa.
Na Guerra do Iraque, por exemplo, o Time dos EUA, que já havia anteriormente implodido a arbitragem pacífica da ONU, continua recebendo a explosiva contra-ofensiva da Turma de Saddam, fazendo cair humilhada a própria ONU. E são vários os campos de batalha, cada um mais irracional e violento que o outro, alguns com atletas-soldados diferentes (israelitas, palestinos, africanos, russos, iugoslavos, dentre outros), mas todos comandados pelos mesmos e arrogantes técnicos. E enquanto eles continuarem a disputa pela medalha de ouro da prepotência, o mundo seguirá perdendo, assistindo perplexo ao assassinato dos torcedores da paz, como o que acaba de vitimar o brasileiro Sérgio Vieira de Mello. Até quando?
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(*) Cezar Brito é advogado, conselheiro Federal da OAB e presidente da Sociedade Semear.
cezarbritto@infonet.com.br