Comuna: Quantas lágrimas perdidas!

A sabedoria popular nos diz: “Águas passadas não movem moinhos”.

Outros dizem, sarcástica, e até, sabiamente: “Defunto que não conheço, nem rezo, nem ofereço”.

Disse Jesus, por missão, a um jovem que queria antes sepultar seu pai: “Segue-me, e deixa que os mortos enterrem os seus mortos; vai e anuncia o reino de Deus (Lc 9, 57-60; cfr. Mt 8, 19-22).

Heráclito de Éfeso, talvez em outra linha, mas com precisão filosófica: “Ninguém se banha nas mesmas águas”.

Tudo porque: “as águas passam e nós passamos com elas”, em acréscimo de Luís Roberto Benati, que inseriu no seu pensar a doçura e o bom humor de Manuel Bandeira versejando:

“Andorinha, lá fora está dizendo:

– Passei o dia à toa, à toa!

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!

Passei a vida à toa, à toa…

Sem estar “à toa na vida, nem vendo a banda passar”, encontrei no Le Figaro, edição de ontem 25 de maio, que a Diocese de Paris está homenageando nessa semana os seus “Mártires da Comuna”.

A notícia acrescenta que alguns desse mártires eram religiosos, foram assassinados em maio de 1871 pelos “federados” ateus, e poderão brevemente ser beatificados pela Santa Igreja.

Historicamente, em maio de 1871, na Rua Haxo, no 20º arrondissement de Paris, local onde se construiu uma Igreja, 49 reféns, entre os quais 10 religiosos, foram fuzilados pelos “Communards”.

Por “Communards”, ficaram conhecidos os revolucionários que aproveitando-se da fragilidade da nascente 3ª República Francesa, apropriaram-se do governo da cidade, tentando implantar um regime popular, uma lembrança já esquecida pela capital mas que a Igreja Católica não deseja ignorar.

Na municipalidade parisiense, alguns se lembram que foram 72 dias de guerra civil acontecidos em 1871, 150 anos atrás, quando 49 “reféns”, incluindo 35 guardas e gendarmes do governo legal, 4 civis e 10 religiosos, foram fuzilados pelos federados, militantes e ateus anticlericais.

Durante essa semana, e até o próximo domingo, a Igreja Católica de Paris presta-lhes uma homenagem sem precedentes, quando cinco desses religiosos poderão ser beatificados.

Segundo a mesma notícia o seu julgamento romano já está bastante avançado e os consultores da congregação para a causa dos santos votaram unanimemente neste sentido, podendo o Papa anunciar a sua beatificação no próximo ano.

Quem são esses religiosos?

O mais emblemático é um sacerdote, religioso de São Vicente de Paula, o Padre Henri Planchat, justamente apelidado de “o sacerdote dos pobres“.

Segundo texto de Jean-Marie Guénois, o Padre Planchat passara a vida ajudando famílias da classe trabalhadora, longe da turbulência política da qual restou refém.

Seu corpo encontra-se repousando na Igreja de Notre-Dame-de-la-Salette, no 15º arrondissement de Paris, restando “Ainda intacto”, segundo informações do padre Yvon Sabourin, postulador da causa, que assim afirma:   “Vimos isso durante uma exumação em 2017 com o Bispo Éric de Moulins-Beaufort.  Comprovando uma exumação anterior que havia estabelecido o mesmo fenômeno em 1959. “

Pelo que se conhece, o procedimento de beatificação exige o reconhecimento do corpo do futuro beatificado.

Acontece, de acordo com os relatórios de várias testemunhas, que alguns corpos ainda se encontram intactos.  O que é um sinal de santidade para a Igreja.

Os outros quatro mártires reverenciados são sacerdotes “picpucianos”, nome conhecido de uma ordem religiosa cuja sede se situava no bairro de Picpus em Paris, a Congregação dos Sagrados Corações de Jesus e Maria: Padres Radigue, Tuffier, Tardieu e Rouchouse.

“Entre os seis outros clérigos assassinados em 26 de maio de 1871 estão um padre da diocese de Paris, Jean-Marie Sabatier, um seminarista, Paul Seigneret e três jesuítas, os padres de Bengy, Caubert e Olivaint.

Dom Georges Darboy, arcebispo de Paris, também morrera neste mês sangrento, no dia 24 de maio, junto com dois padres e cinco dominicanos, além de oito funcionários de suas escolas, todos baleados em 25 de maio”.

Segundo a mesma matéria jornalística, no ano de 1964, o Papa Paulo VI propôs unificar as causas destes “mártires da Comuna”, considerados assassinados por “ódio à fé” pela Igreja, “mas o espírito de 1968 impediu o projeto”.

Os eventos de 1968 levaram o  Cardeal Marty, então Arcebispo de Paris a interromper a causa do Bispo Darboy.  Decisão seguida pelos jesuítas.

Somente em 2005 os religiosos de São Vicente de Paulo assumiram a causa do Padre Planchat.

“Não há nada para se envergonhar”, argumenta o Padre Sabourin, “da injustiça sofrida por esses religiosos exemplares em suas vidas por outros, presos e executados sem julgamento por serem padres.  Honrar sua memória não é um ato político.

O grande problema é que a briga continua.

Na sequência dos eventos da “Comuna”, já o afirmei aqui em 22 de outubro de 2020, quando publiquei o texto “Sacré-Coeur e o pecado de todos nós” em referência aos 150 anos da Basílica de Sacre-Coeur, a alva Igreja que abençoa a cidade-luz do alto de Montmartre.

A basílica fora construída em louvação dos combatentes vencidos em Sedan, em 1870, guerra em que a França, esmagada pelos alemães, sofrera a 1ª derrota a qual se seguiriam outras: uma 2ª , frente ao Kaiser Guilherme, e uma 3ª, perante Hitler.

Isso, porém, são outras histórias, dos franceses sempre apanhando e sendo amparados pelo guarda-chuva americano, vindo do além-mar.

No território apertado do hexágono francês em que restou encolido, o que sempre existe e se repete em toda via, são as múltiplas revoluções e anarquias.

Da Comuna de Paris, o que se sabe, é que houve muita morte de um lado e muito mais do outro.

Dos fuzilados dessa Comuna, a História Oficial, tenta esquecer evitando contrição e arrependimento.

Os revolucionários “Communards”, e seus adeptos que são muitos e creem ainda, acham que os fuzilados, se não eram açabancardores ou ladrões, o eram figuras criminosas e delituosas, cuja eliminação sumária, continuam necessárias por melhor assepsia da História e da própria humanidade.

Nesse sentido, restou incompreendido ainda, e aí denunciado como o verdadeiro crime, os eventos acontecidos quando a Comuna depois foi sufocada, em uma terrível carnificina, promovida pela 3ª República nascente, com o auxílio das tropas germânicas convocadas.

Do lado dos mártires cometidos pela Comuna, o Pároco de Notre-Dame-des-Otages, ou Nossa Senhora dos Reféns, o Padre Stéphane Mayor, acrescenta: “A questão não é política, é religiosa.  Houve violência de ambos os lados.  O Município foi construído com base em ideais que respondiam a profundas injustiças sociais, mas essa grande busca pela igualdade era considerada um antagonismo à fé católica.  Queremos lembrar que a melhor resposta ao ódio é a do amor que esses homens deram, por todos, em nome de Cristo.”

O problema, todos o sabemos, é que os totalitários ao longo da História, acreditam que não foram vingados ainda os verdadeiros ideais revolucionários que introduzirão a igualdade entre os homens, e assim uma “Comuna”,pode sempre ressurgir e se impor para sempre.

Como é assim que o mundo caminha, os religiosos parisienses não são bem-vistos em suas pretensões de rezar pelos seus mortos.

No domingo próximo, o Arcebispo de Paris deverá celebrar uma missa solene.

No sábado, serão organizadas peregrinações aos túmulos dessas testemunhas da fé, em particular ao Cemitério de Belleville, “se a prefeitura de Paris nos der permissão de ali entrar mais de dez” acrescenta o Padre Michel Viot, atemorizado nesses tempos em que o anticlericalismo, endêmica doença francesa, hoje vem travestida de “medida sanitária” em tempos de Covid.

Como os idos dos 150 anos passados exibirão, por sua memória inapagável, o real partidarismo ideológico que o motivou, em contrapartida aos orantes do Cemitério de Belleville, cerca de 600 maçons também se reunirão no mesmo dia, desta vez no Cemitério Père-Lachaise, em frente ao muro onde foram ali fuzilados, em 27 de maio de 1871, sob o “império da lei e da ordem, pelo governo legal constituído e reposto”, os últimos“Communards resistentes”,

Ou seja: que cada um pranteie os seus mortos e não passemos nessa vida pior que as andorinhas: à toa, à toa…

Quantas lágrimas perdidas!

 

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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