Educação, civismo e democracia

Clotildes Farias de Sousa

Aluna do Doutorado em Educação – Universidade Federal de Sergipe

Orientanda do Prof. Dr. Dilton Maynard

E-mail: clotildesfs@gmail.com

Ao contrário da suposta contradição entre civismo e democracia, apontada em estudos acerca da educação brasileira, os termos condizem. Eles podem ser compreendidos fora de uma estrutura analítica que os opõe, a qual relaciona civismo com militarismo, por exemplo. No passado, já no início do século vinte, essa noção orientou determinados movimentos de escolarização; no presente, o civismo ainda é conceito-chave para pensar o Brasil porque suscita debates em vista dos dilemas atuais que giram em torno das instituições democráticas.
Geralmente, o civismo aparece atrelado à militarização nos estudos histórico-educacionais centrados na análise dos sistemas estatais de ensino e/ou na inexistência deles. A ênfase no Decreto-Lei n. 869, de 12 de setembro de 1969 que instituiu a Disciplina Educação Moral e Cívica no currículo escolar de todas as escolas do país por vinte e quatro anos, até a promulgação da Lei n. 8.663, em 14 de junho de 1993, terminou por associar de modo inexorável a ideia de civismo com Ditadura Militar. Nesse caso, as experiências anteriores a 1964 foram relegadas ao segundo plano ou, quando se trata das primeiras décadas do século vinte, dissolvidas nas propostas de educação cívico-patrióticas difundidas por Olavo Bilac, geralmente consideradas expressão do militarismo do poeta.
Os movimentos cívico-educacionais das primeiras décadas do século vinte não se resumem às propostas de Olavo Bilac, tampouco as propostas do poeta devem ser correlacionadas à militarização, exclusivamente. As ligas contra o analfabetismo, criadas em todos os estados do Brasil na segunda década do século vinte, com o intuito de promover a escolarização elementar, comprovam a existência de instituições civis organizadas e inspiradas em diferentes acepções da cultura nacional dos anos de 1910. A cultura cívica do início do século vinte era patriótica, sim, porque fundada na produção de símbolos e rituais, hinos, homenagens, votos de reconhecimento e agradecimentos, nem por isso atrasada e antidemocrática.  Não somente o apego ao solo pátrio e o orgulho da própria história caracterizavam os movimentos republicanos, mas a livre iniciativa da sociedade.
É possível vislumbrar outras explicações para o civismo e reencontrar o seu nexo com projetos educacionais democráticos à luz dos conceitos formulados pelo historiador francês Alexis de Tocqueville. Ele tratou do funcionamento da democracia no clássico livro “A Democracia na América”, obra que teve o primeiro volume publicado em 1835. Em 1840 veio a público o segundo volume, com uma compreensão da importância da democracia para remodelação do processo político, dos comportamentos intelectuais, das crenças e costumes do povo e vice-versa. É no segundo volume que o autor aprofunda a ideia do associativismo voluntário, mostrando que se materializa sob a forma das instituições livres. Nas chamadas instituições livres a cultura liberal se manifesta, conforme ele vira nos costumes e tradições do povo norte-americano. O civismo que diz respeito ao espírito associativista refere-se à conduta de homens e mulheres que agem a favor de uma causa comum, em nome da nação. O civismo é a ação coletiva orientada pelo espírito patriótico, ou seja, um esforço conjunto guiado pelo bem-estar social, pela igualdade de condições, que permite a todos atingirem a riqueza material, independente das diferenças hereditárias e da sorte. Em última análise, civismo é exercício de cidadania. Diferente do individualismo, o civismo se efetiva pela ação do homem democrático ou social que deixou de lado o isolamento e os seus interesses particulares.
No âmbito da cultura cívica situa-se o poder do povo que luta contra os males e os embaraços da vida por si mesmo para alcançar vários fins, seja de segurança pública, de comércio, indústria, de moral, de religião ou de educação. O povo reunido é soberano e capaz de assegurar o progresso de uma nação. Sem dúvidas, o poder do povo tem as suas contrapartidas, pois pode se tornar tirânico se não for controlado pela própria cultura do associativismo, ou melhor, do civismo. O papel das associações voluntárias é, justamente, educar os homens na cultura cívica, fazendo-os sentir a coisa pública como sua e de todos, a defender a igualdade, sem deixar de ser livres.
Na perspectiva tocquevilliana, a cultura cívica leva à democracia, mas é tarefa da educação mantê-la. A educação extrapola o simples esclarecimento do espírito, pois se encontra fundada na regulação dos costumes, quer dizer, na transmissão de valores fundamentais a vida coletiva. A educação visa, por exemplo, o respeito às tradições e instituições nacionais, assim como a capacidade de resolver os problemas coletivos de forma independente, livre do paternalismo autoritário e demagógico do Estado. A leitura e a escrita são insuficientes, nesse caso, pois os verdadeiros conhecimentos advêm da experiência, principalmente, do autogoverno.
À parte às polêmicas que o pensamento tocquevilliano possa suscitar, por se tratar de um historiador liberal, as suas ideias ainda causam impacto, quando relidas e confrontadas aos acontecimentos nacionais da atualidade. Sem pretensão alguma de cristalizá-las, tais ideias ajudam a afirmar a relação estreita que tem a educação com o civismo e com a democracia. Não podemos perder de vista essa conexão, com medo de retrocedermos em nossas conquistas sociais. Civismo não é sinônimo de atraso e autoritarismo, necessariamente; mas a falta da virtude cívica, com certeza. Além disso, se o agir coletivo e espontâneo pressupõe um sentimento patriótico, como supõe Alexis de Tocqueville, refletir acerca dessas questões pode ser ponto de partida para o desenvolvimento de práticas políticas fundadas na ética, para o fortalecimento social e para a cultura política efetivamente democrática.

Para saber mais, leia:

TOCQUEVILLE, A. A democracia na América: sentimentos e opiniões. De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 113-146.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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