Lobão, Tânia Soares e os direitos autorais

Ao terminar de ler a autobiografia do músico, compositor e cantor Lobão fica-se com uma sensação ambígua de que o cara merece todo o respeito, afinal já tem o nome registrado na história da música brasileira como artista, líder classista e até pela rebeldia, mas que não é tanto quanto ele próprio apregoa de si mesmo. Lobão quer se inserir entre os grandes, o que evidentemente não é. Pelo menos ainda não. Talvez a precocidade de lançar uma biografia aos cinqüenta e poucos anos tenha atrapalhado.

O livro “50 anos a mil”, escrito a quatro mãos com o jornalista Claudio Tognolli, foi lançado no ano passado, quando Lobão já contava 53 anos. A pressa em narrar a história da própria vida certamente encontra explicação no flerte com a morte, nas tentativas de suicídio que quase cometeu desde a juventude, afora os excessos próprios do mundo do rock’n ’roll tupiniquim que estourou nos anos 80. E o biografado foi um dos que mais viveram – e quase morreram – intensamente.

Mas nem só de maluquices vive o homem. Lobão tem uma rica trajetória musical. Saiu de casa e profissionalizou-se aos 16 anos como baterista da banda Vímana, que contava com ninguém menos que Lulu Santos, Marina e Ritchie, enquanto acompanhava uma peça encenada por Marília Pêra. Foi um dos fundadores da Blitz, uma das bandas de maior sucesso nos anos 80 e 90, da qual se desligou por não se interessar pela música ingênua do grupo. Fez sua própria banda, Os Ronaldos, e depois seguiu carreira solo.

Faz sucesso com hits como “Me chama”, “Essa noite não”, “Rádio Blá”, “Por tudo que for”, “Vou te levar”, “Corações psicodélicos”, “Vida louca vida”, “Revanche” e “Vida Bandida”, que estourou, tornando-se seu maior sucesso de vendas justamente – e provavelmente – quando esteve atrás das grades, condenado por consumo e apologia das drogas.

Namorou todos os estilos musicais, do clássico ao samba, aperfeiçoou-se como instrumentista, notadamente como violonista e guitarrista, enquanto desfrutava nas noitadas do Baixo Leblon da amizade e parceria de Cazuza e Júlio Barroso – que se matou durante uma balada, atirando-se da janela de seu apartamento em São Paulo (conta-se que ele e Cazuza o homenagearam cheirando uma carreira sobre o caixão). E viveu encontros memoráveis com o ex-viciado Nelson Gonçalves, que disse que Lobão era ele anteontem, e Elza Soares, que o levou para a bateria da Mangueira.

No meio do caminho, uma coleção de desafetos, numa gradação que vai de Herbert Viana, a quem acusa de plágio, a Caetano Veloso. Lobão já blasfemou coisas terríveis contra eles, mas no livro ele ameniza nas críticas. Inimigo mesmo é o boss da indústria fonográfica. E aí vem a parte que nos interessa mais diretamente.

Desde sempre insatisfeito com as vendas que as gravadoras lhe apresentavam, incondizentes com o sucesso que fazia nos shows e no rádio, Lobão fez críticas que acabou lhe rendendo o descontrato com a Universal e o fechamento das portas das demais gravadoras. Enquanto as multinacionais encetavam uma campanha contra os discos piratas, campanha apoiada por seus artistas mais conhecidos, Lobão esbravejava contra a “pirataria oficial”. E lançou um selo próprio, Universo Paralelo, pelo qual chegou a vender, em bancas de revistas, 100 cópias do CD independente “A vida é doce”.

“Precisamos numerar os discos”, pregava ele, certo de que assim quem vivia de música teria maior controle sobre as vendas. “No meio de 2001, recebo um telefonema de uma deputada federal, Tânia Soares, querendo saber o que ela poderia fazer pela classe artística. Eu achei aquilo muito simpático, e meio que sem dar muita importância ao fato soltei: ‘Deputada, uma boa coisa a se fazer seria a numeração de discos em meio a essa campanha contra a pirataria. Seria uma boa forma de a indústria se diferenciar definitivamente do congênere ilegal…’ Confesso que não cheguei a ficar empolgado com o entusiasmo da deputada, por conhecer aquela cantilena há muitos anos”, conta Lobão, no seu livro.

Um ano depois, para sua surpresa, recebe um telefonema de Tânia Soares. “Saí (do banho) enrolado na toalha e me atraquei no telefone: ‘Alô, deputada? O que aconteceu?’ ‘Lobão, você não vai acreditar… nós conseguimos a votação da lei da numeração na Câmara dos Deputados, por unanimidade!’ Me segurei para não cair a toalha…”
O projeto da deputada federal Tânia Soares, do PCdoB de Sergipe, de abril de 2001, propunha incluir o seguinte artigo à Lei de Direitos Autorais: “Os exemplares postos à venda da obra artística, científica ou literária deverão conter numeração ordinal crescente e a assinatura do autor”.

Ela chegou à conclusão da necessidade de um dispositivo adicional à lei quando leu uma entrevista do cantor à revista Caros Amigos. "Liguei para ele e conversamos e eu disse que ia propor acrescentar um artigo à lei", afirmou. "Acho que aquilo precipitou a saída dele da gravadora, mas é um artista corajoso, uma pessoa que tem coragem de enfrentar, de botar a cara, de chamar a discussão", disse Tânia à época. Logo depois o projeto passou pelo Senado.

Enquanto isso entidades representativas de editoras de livro e gravadoras reclamavam. A Câmara Brasileira do Livro enviou carta ao presidente Fernando Henrique Cardoso pedindo que ele não sancionasse a lei. A Associação Brasileira dos Editores de Livros, que representa editoras de livros didáticos, seguiu o exemplo da CBL e também mandou sua carta ao presidente.

A Associação Brasileira dos Produtores de Discos também rejeitou a idéia da deputada Tânia Soares. Em entrevista coletiva, os presidentes de algumas das principais gravadoras em ação no País – BMG, Sony Music, Universal, Warner e Som Livre – e outros setores da indústria fonográfica, afirmavam que a numeração era inviável. Para o presidente da Microservice, maior fabricante de CD do Brasil, “não havia como numerar um CD na linha de montagem porque eles são fabricados simultaneamente em diversas máquinas”. Mas além dos músicos, escritores também se manifestaram a favor da numeração. A União Brasileira de Escritores enviou carta ao presidente dizendo que o controle sobre tiragens de livros era sua “reivindicação histórica”.

Lobão e Beth Carvalho lideraram uma campanha buscando adesões da classe artística para influenciar a decisão do presidente de sancionar a lei. No entanto, para decepção de Lobão, de Beth e de Tânia, alguns nomes famosos recuaram. Caetano Veloso chegou a liderar uma contra-ofensiva, afirmando que não autorizou Lobão a usar o seu nome. “Não quero fazer parte dessa turma”, chegou a escrever em artigo na Folha de S. Paulo.

“Não é possível, eles me deram a palavra de homem, tavam animadíssimos, eles são históricos nisso”, disse Lobão, referindo-se a Caetano e Gilberto Gil, a quem acusou de serem os “verdadeiros simonais da classe”, alusão a Wilson Simonal, que morreu sendo acusado de ter agido como dedo-duro na ditadura. Ivan Lins, Milton Nascimento e Lulu Santos também haviam voltado atrás, certamente por pressão das gravadoras.

No dia 17 de julho de 2002, o presidente Fernando Henrique Cardoso vetou o projeto de lei. Para tentar driblar o desgaste da derrubada de uma norma que protegeria o pagamento de direitos autorais, FHC decretou a criação de um grupo de trabalho que deveria propor, em 30 dias, um projeto alternativo de controle a ser encaminhado ao Congresso.
Resultado: o projeto de lei proposto por Tânia Soares, regulamentando o artigo 113 da Lei de Direitos Autorais, com algumas alterações, foi aprovado e acabou vigorando legalmente a partir de 22 de abril de 2003, determinando a numeração dos lotes de CDs produzidos pelas gravadoras. Lobão tinha ganhado a guerra. “A classe musical que se uniu foi a independente. A gente conseguiu passar o projeto que foi lavrado e é lei. Isso é uma vitória histórica!”, comemorou.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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