Mas, 50 anos depois, 1964 aconteceu.

O tempo é inexorável! Eis que se passaram 50 longos anos!

Os que foram jovens, aqueles que não se perderam no caminho, estão encanecidos.

Alguns resistem sem maturar, e imaturos permanecem ainda, prosseguindo infantis ou em arroubos juvenis, em descaminhos que a aspereza do tempo não lhes conseguiu burilar nem o agir, muito menos o pensar, perante a vida das ideias e as mudanças politico-ideológicas do mundo.

Para estes, a maturidade é simples ganga de lodo e limo que envelopa o ser desmemoriando-o no mesmo engano, agora por insolvência de sobrevivência; no erro, sempre no erro, desonestamente inclusive, se esfoliando sem florescer.

Ou não é assim quando insistimos em reconhecer os nossos velhos conflitos e as escolhas pueris assumidas?

Não seríamos mais honestos com a nossa reconhecida imperfeição, assinalar que fomos muito tolos enquanto jovens?

Não fora assim, cinquenta anos passados, uns exagerando protestos, pregando desobediência e desordem, outros acenando para o caos em plena excedência de liberdade, e outros mais tresloucados ainda, achando-se possuidores de tectônicas forças super-humanas, para tudo mudar no grito e na vontade destrutiva das ruas enraivecidas a seu comando?

E não cabe a imprecação ao verificarmos hoje, passados 50 anos, em memória de cascudos recebidos em tantas lembranças doridas, que restem ainda tantos estultos empedernidos, acreditando contra toda racionalidade exposta e experimentada, que as ruas enraivecidas, no afã de “acordar o gigante”, podem ainda construir o vero porvir; repetindo os mesmos erros, responsando os mesmos dísticos, e solfejando as velhas frases carcomidas?

Ah, a velhice! “A velhice é um naufrágio”, já dissera o General De Gaulle, daqueles que se arvoravam de um passado honroso para erigir um presente calamitoso.

Frase que bem cabe no texto, sobretudo por aqueles que em não reconhecendo a calamidade do seu passar, parecem ainda gritar que o mote profundo e verdadeiro é de novo repetir o desatino sorriso: “é proibido proibir”!’, ou “contra tudo que está aí por um mundo sem catracas”, queimando pneus e incendiando ônibus.

Por que teimamos em reclamar a violência carpida, sem reconhecer a nossa virulência escarrada, quando o noticiário externo está a nos ensinar mais uma vez que sempre há ferimentos com bem maior trauma, que os denunciados no regime imposto em 1964?

E o que dizer destes 50 anos que passaram, sem que ninguém ousasse ainda levantar o véu que teima em esconder o que não perdoou, servindo apenas para o recebimento de benesses a título de resgates só justificados em ganhos de revanche?

Por acaso a História pede perdão dos seus atos?

Deixando-se de refletir sobre os idos fastigiosos ou funestos de 1964, os feitos daquele 31 de Março (ou do 1o de Abril, como o querem tantos tolos!) se esvaem e se modificam ao sabor das ideologias e vontades?

Não está assim a nossa historiografia refutando a verdade fatual em nome da opinião canhestra que falsifica a cena, a trama e até o cenário?

Que é a verdade histórica? Ela é simples lenda, uma mera versão, um arpejo de ficção?

Por acaso o olhar dos vencidos é mais honesto e imparcial que o ufanismo dos vencedores?

E, no relativismo do mau gosto, a versão do acontecido pode ser apagada, por esforço de fazer acontecer o não constatado?

Neste contexto, vale retornar ao exame de Hannah Arendt sobre verdade e história no seu luminoso texto “Verdade e Política”, lançado por resposta às patrulhas ideológicas que a censuraram em demasia pelo seu livro reportagem “Eichmann em Jerusalém”.

Porque Arendt fora muito criticada, não pela sua tese assaz festejada de “banalidade do mal”, mas por denunciar todo o cenário que contemplara e sentira em pele própria, em indiferença consentida e tolerada da ampla maioria de alemães no seu entorno.

Sem contar que houve também muita pusilanimidade e condescendência de numerosos judeus colaboradores, que se não aplaudiram delituosamente os excessos nazistas, auferiram os seus bônus, eximindo-se de quaisquer ônus, e dos próprios erros denunciados naquele livro que compusera como enviada da revista americana The New Yorker.

Livro que causou muita perplexidade, mundialmente falando, porque a filósofa judia ousara relatar imparcialmente o julgamento do carrasco nazista, ocorrido na “Beth Hamishpat, a Casa de Justiça”, o espaço da “guarda, conservação, culto e engrandecimento do justo”, mas que em verdade o ajuizamento lhe pareceu tangenciar um justiçamento compreensível à luz dos velhos princípios Deuteronômicos, inspirados em Mani a Hamurabi; a boa e velha vingança, “olho por olho, dente por dente”, tudo aquilo que não deveria transparecer perante o mundo.

Acontece que o livro denunciava uma série de erros gravíssimos em desfavor do réu, sobretudo pelos conflitos idiomáticos ali contidos, afinal o incriminado e as testemunhas eram interrogados em iídiche, a língua do infante estado Judeu, vários tradutores faziam a versão para o alemão, outros para o inglês e o francês, porque o julgamento se fazia via rádio transmitido para o mundo, em vários conflitos idiomáticos, alguns até hilariantes para o próprio réu, uma coisa terrível, só denunciada por Hannah Arendt, por ser uma das poucas pessoas no auditório, entre assistentes, testemunhas e jurados, a dominar com profundidade os quatro idiomas do processo; hebraico, alemão, inglês e francês.

E tantos erros, distorções e vícios, sem falar que a corte conduzira o processo de modo a salvaguardar os “bons alemães”, sempre em maioria, agora sob o comando de Konrad Adenauer, ajudando financeiramente o Estado Judeu, separando-os em assepsia dos “maus alemães”; Eichmann e sua lobal cadeia hierárquica, muito acima no cume inalcançado, ou bem abaixo, tão espraiado, quão diluído e definitivamente perdido.

Algo que bem inspiraria as nossas ridículas “Comissões da Verdade”.

Mas, “os fatos realmente existem, independentes de opinião e interpretação?” Pergunta a mestra, agora no novo ensaio “Verdade e Política”, discutindo verdade e história, ponto sobremodo atual nestes tempos de Pós-Ditadura Militar em refazeres de história.

“Que eu saiba – prefacia a mestra – jamais alguém pôs em dúvida que verdade e política não se dão bem uma com a outra, e até hoje ninguém, que eu saiba incluiu entre as virtudes políticas a sinceridade”.

Reflexão persistente ainda, sobretudo agora em atualidade e permanência, no contemplar da circunstância da filósofa, como também na minha, enquanto observador, “afinal as mentiras sempre foram consideradas ferramentas necessárias e justificáveis ao ofício não só do político ou do demagogo, como também do estadista.”

Mentiras que prosseguem nestes novos tempos de releituras da história em excessiva miudeza intelectual, desvirtuando a ciência, para convalidar o in-veraz.

E neste perquirir notável, questiona Arendt como se estivesse a malhar ferro frio, ou a suavizar argila sem compromisso de escultura: “É da essência mesma da verdade o ser impotente e da essência mesma do poder o ser embusteiro?”

Uma pergunta que se atualiza também quando, cinquenta anos se passam e a análise do regime militar brasileiro se faz apodrecidamente macerada, deleteriamente esmigalhada e ominosamente desconstituída, ao sabor do conto, do pesponto, da lenda tornada contenda, em tantos heróis em feitos de piada.

Vale então repetir a mestra: “Mesmo que admitamos que cada geração possa ter o direito de escrever sua própria história, não admitimos mais nada além de ter ela o direito de rearranjar os fatos de acordo com sua própria perspectiva; não admitimos o direito de tocar na própria matéria fatual”.

E assim vale reproduzir o diálogo que o vitorioso presidente francês da 1a Grande Guerra, Georges Clemenceau, cognominado “O Tigre”, mantivera com um potentado alemão, dirigente da nascente República de Weimar, sobre a questão da culpabilidade pela eclosão daquela guerra, tão trágica em perdas de vida: “O que, em sua opinião – perguntou o alemão – pensarão os historiadores futuros desse tema espinhoso e controverso?”

E “O Tigre” replicou: – “Isso eu não sei. Mas tenho certeza de que eles não dirão que a Bélgica invadiu a Alemanha.”

Pois é! Se não existisse a Bélgica e a Holanda entre a França e a Alemanha, poder-se-ia historiar que a França fora a potência agressora na 1a Grande Guerra, quando em verdade só fizera se defender e repelir o germânico invasor.

Ou seja, há um limite intransponível no qual a história acontece independente da sua interpretação. E nesse particular não vale o chiste galhofeiro do genial Nelson Rodrigues: “Se o videoteipe vai contra os fatos, pior para o videoteipe”.

E a lembrança de Nelson se faz atual porque a historiografia teima em recontar a história, chacinando a Ciência para entronizar ideologias e versões, sem, nem mesmo, tentar por credível demonstração, repetir o videoteipe.

É o que se vê com vasta publicação exibida nas nossas livrarias, cujos títulos exteriorizam o chamativo número 1964, um ano que se não restou esquecido, apagado mesmo, culpe-se à incompetência de vasto segmento da historiografia nacional que teima em remar contra a realidade dos fatos.

Agora, eis que 1964 está a completar 50 anos e nossos historiadores se entronizam como verdadeiros autores dos atos e fatos, quando em verdade estão a distorcer o real, ou fingir como avestruz de cabeça enfiada no chão, sem ver a tempestade, seu entorno, a sua paisagem, enquanto cenário.

É o que se nota em variada publicação disponível nos jornais e sobretudo nas nossas livrarias como os seguintes títulos: 1964 – História do Regime militar Brasileiro de Marcos Napolitano, 1964 – O Verão do Golpe de Roberto Sander, e História do Brasil em 50 Frases de Jaime Klintowitz, um texto não dedicado a 1964.

Depreende-se nas publicações acima que por más gestas, indigestas ou funestas razões, seus autores teimam em tentar apagar a nossa história, com aquela borracha ruim que rasga o papel ou o enodoa, mas que não consegue ocultar o que se passou, como se fora um Proust invertido que tudo falseia, sem resgatar memória.

Porque nestes livros há uma total desconstrução dos fatos: Para Napolitano, por exemplo, o Presidente João Goulart era queridíssimo por excelente administrador. Não havia indisciplina na caserna. O exército estava unido em torno do Presidente. “O golpe fora dado por conspiradores contra Jango e o trabalhismo: civis e militares, liberais e autoritários, empresários e políticos, classe média e burguesia. Todos unidos pelo anticomunismo, a doença infantil do antirreformismo dos conservadores.

A parte isso (muito antes) em12 de setembro de 1963, sargentos rebelados tomaram de assalto a Base Aérea, o Grupamento de Fuzileiro Navais, o Ministério da Marinha, o Serviço de Radiofonia do Departamento Federal de Segurança Pública, a Central Telefônica, obstruíram os principais acessos a Brasília, chegaram a Invadir o Congresso Nacional, tomaram o STF, prenderam o Ministro Vitor Nunes Leal, movimento sufocado por tropas legalistas com 536 presos e dois mortos”, nada que alarmasse a democracia, mesmo com palavras de arroubo como “Reforma Agrária na lei ou na marra, com flores ou com sangue”, e que Jango tentara aprovar o Estado de Sítio.

Mas, igual ao bate-papo de Clemenceau, ninguém poderá dizer que nenhuma tropa rebelada saiu de Juiz de Fora, Minas Gerais, na madrugada de 31 de março comandada pelo General Olímpio Mourão Filho, contingente que atravessou o Rio Paraibuna e invadiu o Rio de Janeiro sem resistências.

E a despeito de tantas comprovações em contrário citadas por Napolitano, Sander e muitos articulistas dos jornais daqui e de fora, foi este movimento de um “general tresloucado” que disparou a Revolução, isso na madrugada de 31 de março.

Mas, para esses autores o verdadeiro golpe não foi dado assim, mas pela frota americana a milhares de quilômetros do Rio Paraibuna e da Baia de Guanabara.

Para esta corrente de historiadores o golpe foi dado por uma esquadra americana fundeada no Mar do Caribe, por inspiração de John Kennedy, o derrotado invasor da Baia de Porcos em Cuba, que assassinado em 1963, tivera tempo de legar vitorioso plano de conquista do Brasil, via embaixador Lincoln Gordon, tolice que o erige como o verdadeiro líder inspirador do golpe e da consequente ditadura impiedosa que aconteceria por mais de vinte anos no Brasil.

Análise que, além de falsear feitos e criar mitos colonialistas, maximiza os vinte anos de sofrimento, nega qualquer desenvolvimento do país e generaliza o dolo e a culpa do excesso de tortura e violência acontecido.

Neste sentido, em tanta enxurrada de amargura denunciada, destaque-se por oportuno, que a violência sempre está presente no noticiário policial, ontem, hoje e sempre, como recentemente aconteceu com o pedreiro Amarildo no Rio de Janeiro e com o menino Jonathan em Sergipe.

Em tempos novos e até petistas, cadáveres  permanecem insepultos ou sem suficiente elucidação.

Mas, para que falar de Jonathan e Amarildo se para estes historiadores e jornalistas são apenas toscos acidentes de percurso de uma tortura pouco compreensível, mas inevitável por desimportante?

Importante, enquanto feito verdadeiro e notável nâo é dissertar sobre o regresso econômico e a tortura na Ditadura Militar de 1964 a 1985, com o povo sofrendo o diabo?

A quem serve tal refletir ingênuo, senão farsesco de desvirtuar e elidir os fatos, tão encantador, quão jornalisticamente enganador?

À História, com certeza não, embora muita gente venha ganhando excessiva notoriedade e auferindo polpudas indenizações pecuniárias.

Outra pergunta: Por acaso muda alguma coisa o movimento de 1964 ser chamado de golpe, contragolpe, quartelada, insurreição ou revolução?

Houve, como se quer dizer agora, excessiva covardia entre os vencedores, e heroicas resistências bravias, em vasta sangria generosa dos vencidos nas ruas, mesmo que lhes tenha sobrado apenas o seu rastro em diarreia?

E o povo? E o povo “bestificado” novamente vira a tropa na rua como a um desfile de banda e fanfarra, ou aplaudiu sem farra e algazarra, mas com ampla maioria brandindo o terço na rua?

Por acaso este apoio foi de uma de minoria de carolas?

Se for assim, onde está tal beataria entre tantas flores lançadas em louvação à caserna, e quantos vivandeiras que cortejaram a farda para manter os feudos e mandos, por mais de vinte anos ditos extremamente duros, mas que eram sempre denunciados como suaves, excessivamente brandos, e insuficientes para a completa obra revolucionária?

Porventura não fora assim com tantos radicais atrabiliários querendo uma sangueira jacobina em denúncias vis e caças furiosas a comunistas e/ou adversários incômodos, e que só o equilíbrio de poucos conseguira amainar os excessos evitando maiores traumas e dores, a ponto de hoje falar-se mais em “Ditabranda”, este neologismo que simboliza uma ditadura que se não foi tão suave, foi bem mais branda do que dura?

Acaso estou eu a dizer que tudo foi sorriso e flores, como se teimasse não ver muitos horrores cometidos em denúncias e vinganças, omissões e comissões delituosas, que se faziam prestimosas às perseguições ideológicas?

E nessa tonalidade de dureza e suavidade, é correto desmerecer a matemática e a estatística na contagem das baixas nas batalhas na premissa que o horror e o terror são entes deletérios, tão etéreos, quão imensuráveis?

Ah, ideologia! Quantos crimes são cometidos em holocausto de sua história!

É por essa e outras, entre tantas interpretações falsas que a História gorgoleja; rumina bovinamente, repetindo-se em sequência, pelos povos que não conseguem aprender com suas tragédias e farsas, como não pensara Marx no seu “Dezoito Brumário de Louis Bonaparte”.

Bonapartismos à parte, fingindo que 1964 foi o que não foi, o grande medo é a história apagar-se em farsa e repetir-se como tragédia, só para refazer saudosamente aquilo que não concluiu.

Não seria melhor neste aniversário dos cinquenta anos dos tormentosos idos de 1964 deixarmos de olhar o passado, por inevitavelmente superado, e mirar o porvir, sem traumas nem recalques, com os mortos sepultando seus mortos?

E nesta imutabilidade do acontecido, suspiremos aliviados, afinal uns mais outros menos, todos nós sobrevivemos, de maneira quase igual ao Abade Syéies, aquele revolucionário que bem se alegrava por ter conservado a sua cabeça, no meio de tantos circunstantes guilhotinados pelo Terror de sua grande Revolução Francesa.

Assim, por ter sobrevivido também, penso que seria bem melhor para nós que conservamos orelhas e dentes, com e sem traumas, repetir Charles Péguy, um mártir da Batalha do Marne, palavras que bem se aplicariam a tantas lágrimas vertidas no equívoco e no sonho de uma pátria Mãe Gentil: “Felizes os que morreram pela terra carnal,… numa guerra justa!”

Para terminar, cito a mim mesmo num outro texto de 11/05/2011: “Se não existe a guerra justa, epitáfio de Péguy, infelizes são sobremodo os que morrem nas guerras injustas. Quanta inutilidade, quanta perda de sonhos e realizações! Quantas vidas inutilizadas e vocações desvirtuadas!”

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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