Meio grávida

O evoluir da ciência trouxe várias certezas à humanidade, derrubando tabus e edificando novos paradigmas. Através dela a terra perdeu a sua orgulhosa imobilidade celestial, passando a ser apenas uma humilde partícula dentre aquelas que enfeitam o universo. Também via ciência o homem passou a imitar a natureza, sendo parceiro dos deuses na arte de brotar, transformar e destruir vidas. Aprendeu, com ela, a criar o fogo, a voar pelo infinito e a mergulhar nas águas profundas dos oceanos. A ciência fez o homem duvidar até da própria existência de Deus.

 

Mais ainda, fez o homem acreditar que era o próprio Deus. Um deus em plena erupção, pois constantemente criando, recriando, destruindo e reconstruindo tabus, certezas e dúvidas. O tabu de que o homem foi originado do pó, por exemplo, virou poeira diante da certeza evolucionista. A certeza de que a terra era quadrada e habitada por monstros, na mesma esteira, foi substituída pelo tabu de que os monstros se transformaram em homens que enquadram o planeta no compasso de suas de maldades. A dúvida que faz imprevisível o limite da ousadia humana, repentinamente, se transmutou na previsível capacidade de se manter imutável o apego ao poder.

 

A ciência do poder, aliás, é a mais interessante e contraditória atuação do deus-Homem. Talvez porque ainda calouro no campo da divindade. Talvez porque, propositadamente, encontrou na política a melhor forma de manter a fidelidade de seus adoradores. Talvez porque tenha se coligado com o seu adversário diabo-Homem, entregando-lhe cargos importantes, redutos eleitorais, verbas publicitárias, controles sobre licitações, ambulâncias para passear e outros instrumentos políticos infernais. Talvez porque nada saiba do que ocorre no seu reino. Talvez porque queira ou acredite que tudo seja exatamente assim, desde o nascer da humanidade.

 

A última novidade desta ciência foi recentemente lançada pelo PPS em campanha institucional espalhada pelo Brasil. O objetivo: consolidar a sua igreja e, de quebra, aumentar o cobiçado rebanho de adoradores. A estratégia: demonstrar que os seus fiéis eram moralmente diferentes daqueles que freqüentam os outros cultos partidários. O discurso moral: sendo a corrupção o pecado mais grave do momento, pregar que ela tinha sido expurgada do seu credo. E assim se fez em cadeia nacional.

 

Mas a novidade científica não está exatamente na campanha institucional partidária, até porque muito semelhante à dos demais partidos políticos brasileiros. E não poderia mesmo, pois discursos moralistas integram os mais diversos e genéricos cultos brasileiros. O ponto central da descoberta está na solução encontrada para explicar a participação de dois deputados do PPS na relação inicial dos “Pastores Parlamentares Sanguessugas”. Não podendo esconder que a campanha nacional foi desmascarada pela realidade local, somente restou afirmar que eram “apenas dois” os envolvidos. Esclarecendo em outras palavras: diante da grande rede de corrupção que se esparrama pelo país, contaminando tudo e a todos, contabilizar para o PPS “apenas dois sanguessugas dentre os noventa infiéis denunciados” era a prova cabal da “moral ilibada partidária”.

 

Neste simples e não isolado caso, pinçado dentre milhares de outros, se percebe a criativa ação científica dos políticos. Criou-se a verdade científica de que a corrupção é um vírus altamente contagioso, sem controle e cura. E exatamente por ser uma doença generalizada e incurável, infelizmente, infecção é inevitável, desde que em porção razoável. O que é condenável, portanto, é ser “todo-corrupto”, “muito corrupto”, “bem corrupto” “assumidamente corrupto” ou simplesmente “corrupto”. Normal, moral e politicamente correto é ser “meio corrupto”.

 

“Meio corrupto” é quem, por exemplo, rouba pouco ou socializa com os leais parceiros parte da rapina.  Integra o mesmo time aquele que desvia verbas públicas exclusivamente para campanhas eleitorais ou fortalecimento do seu próprio partido político. Pertence ao mesmo agrupamento aquele que faz particular o uso dos bens públicos, somente devolvendo-os quando deteriorados ou denunciados. Enfim, esta honesta turma aglomera aqueles cientistas políticos que acreditam ser possível e aceitável uma mulher estar “meio grávida”.

 

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