Milton Nascimento, com a sua poesia magistral, nos ensinou que “amigo é coisa para se guardar no lado esquerdo do peito, mesmo que o tempo e a distância digam não, mesmo esquecendo a canção, o que importa é ouvir a voz do coração”. E não poderia ser diferente, pois o amigo não tem a invisível insensibilidade do vento, que chega e parte sem deixar rastro ou qualquer sinal de que um dia voltará. Não, o amigo tem um corpo bem definido e nítido, que não se dissipa diante do nosso olhar, mesmo quando o feitiço do tempo faz o vazio surgir em nossa frente.
O amigo é uma espécie de mágico que ousou desafiar a lógica da física, pois é coisa para se guardar, é voz para se ouvir, é corpo e vento simultaneamente. Mas não acaba aí esta fantástica bruxaria, pois quem tem um amigo tem tudo na mesma medida em que não tem nada, pois o verbo “ter” nunca serviu de ingrediente para fazer nascer a poção da amizade. È que guardar a coisa não significa possuir ou ser proprietário do amigo, até porque o coração não é lugar para prisão, o coração é tão-somente a cartola que conserva na eternidade a magia do amigo-feiticeiro.
Da cartola do amigo ou do coração do mágico, tanto faz a forma de se escrever, todos os tipos de encantos podem surgir, complexos ou não. O encantamento pode estar no ato físico que lhe fez quedar a própria vida, na doação dos bens materiais que secavam a paz de sua consciência ou até mesmo no momento em que um simples sorriso já era suficiente para encher a alma. E o gostoso de tudo isso é que todos podem beber da poção mágica preparada ou guardada pelo mesmo coração amigo, pois egoísmo é canção que não se canta quando se está sob o seu encanto.
Eu guardo com orgulho, e sem qualquer disfarce ou maquiagem, que mantenho vários amigos guardados, debaixo de sete chaves, dentro do meu coração. Sei também que estou guardado em muitos outros corações, alguns deles com tal profundidade que sequer sou capaz de mergulhar em sua generosa imensidão. Nada de anormal, pois no mar da amizade os mergulhadores convivem harmonicamente com aqueles que ainda não aprenderam a nadar.
Outro lado bacana do amigo, qualquer que seja o seu nome ou apelido, é que ele tem inúmeras formas para ficar arquivado dentro do nosso coração. Alguns escolhem a forma de conselheiros, sendo sempre lembrados nos momentos em que precisamos ouvir a voz da reflexão. Não raro se metamorfoseiam em pessoas alegres, nos fazendo enxergar que a vida é muito mais colorida do que a tela que pintaram para nós.
Foi o quadro pintado por uma amiga, já definitivamente gravada em meu coração, que me relembrar que o encanto da amizade nunca poderá ser borrado, tampouco destruído pelo cruel ciúme dos que nunca souberam amar. Mesmo agora, quando o seu corpo foi covardemente derrotado por um insensível e poderoso adversário, tenho a mais absoluta certeza de que a minha doce amiga continua feliz, como sempre foi durante toda a sua vida. Não é preciso dizer que ela faz parte da minha querida Galeria da Alegria, o time que é sempre escalado quando necessito olhar o mundo com o sorriso meigo do companheirismo.
Jane Barros Barbosa, o nome físico dessa minha amiga, está guardada no meu e nos corações dos seus amigos, maquiada com o seu sorriso largo, proveniente da alegria esfuziante que brotava de sua alma. Não lembro o dia em que ficou triste, embora tenha certeza de que conheceu o amargo sabor do choro, especialmente quando descobriu que estava impedida de continuar conquistando novos amigos, ao menos aqui na sua querida terra. No dia 28 de agosto, na cidade alagoana de Porto Real de Colégio, quando um dos seus algozes estiver sendo julgado, nós, seus amigos, também estaremos lá no Tribunal do Júri e dos homens, não lembrando que fisicamente partiu, mas testemunhando que ela continua guardada em nossos corações, sorrindo carinhosamente para todos nós.
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(*) Cezar Brito é advogado, conselheiro Federal da OAB e presidente da Sociedade Semear.
cezarbritto@infonet.com.br