O farol e modernidade

Na minha infância, lá pela década de 70, costumava passar parte das minhas férias na Atalaia, na casa de veraneio de meu avô. A Atalaia era longe, não, é claro, que se posicionasse em outro lugar, mas pelos fatos de Aracaju ter outra estrutura urbana e o caminho para se chegar à referida praia ser um tanto diferente do que existe hoje. Em uma das minhas mais remotas lembranças, vejo-me no banco traseiro do Fusca de meu pai, percorrendo uma estrada de barro, atravessando o Rio Poxim por uma ponde de madeira. Na travessia, os pneus passavam por dois estreitos filetes, a medida certa para um automóvel, qualquer descuido poderia ser fatal.  Uma aventura real, maximizada pela minha imaginação de menino.

Esplendoroso, uma pouco além da ponte, o farol. Alto, em branco e preto, guardava quais mistérios, não sei, mas me remetia a um mundo de contos de pirata, aventureiros navegadores, a imagens que eu via em revistas e filmes. Quase não se via a sua base, em virtude do matagal e dunas que o rodeavam. Pela noite, da casa de meu avô, via-se distante o seu facho de luz, rodando, um facho forte, ponto incandescente de um altivo e enigmático monumento. Quem acende o farol? Será que lá existe um tesouro enterrado? Que estórias acontecem em volta do seu mundo? Um dia encontrarei o tesouro.

Hoje, eu resido no mundo do farol, mundo que tem até nome: Farolândia. Não há tesouros, nem piratas, nem mistério. Não há dunas nem matagal. Ao seu redor circulam automóveis, pessoas apressadas, que nem imaginam que ali já existiu um tesouro enterrado. A sua luz agora é fraquinha, sem graça, chula. Areia branca, não há. Há uma galeria de lojas comerciais, há uma faculdade, um posto de combustível, uma barraca que vende comida chinesa, uma fonte luminosa, artificial, de ladrilhos brilhantes. Há o asfalto negro, barulho, a poluição visual das placas de propaganda. O farol que iluminava, agora é iluminado por luzes azuis. Está modernizado. Deixou de ser útil para ser astro.

Está aí a luz que nos trouxe a modernidade. Somos mais rápidos, mais eficientes, mais produtivos. Os automóveis são mais velozes e as estradas são mais confortáveis. Vivemos na era da informação pronta, do conhecimento padronizado. Vivemos na sociedade do espetáculo, onde a TV e outras mídias são o farol guia de nossas navegações. E se a luz não roda mais, aponta seu facho sempre para um mesmo ponto, que sigamos. É a nossa salvação. Se estamos menos humanos, mais estressados e refletimos menos, deixemos pra lá, tudo pela modernidade. Precisamos manter o mundo. Nesse novo mundo quase não cabe mas a nossa imaginação. Ela tá fraquinha… fraquinha… tal qual a lanterna do novo farol.

Segue trecho da obra “O pequeno Prícipe”, de  Saint Exupery

O quinto planeta era muito curioso. Era o menor de todos. Mal dava para um lampião e o acendedor de lampiões …

O principezinho não podia atinar para que pudessem servir, no céu, num planetasem casa e sem gente, um lampião e o acendedor de lampiões. No entanto, disse consigo mesmo:

– Talvez esse homem seja mesmo absurdo. No entanto, é menos absurdo que o rei, que o vaidoso, que o homem de negócios, que o beberrão. Seu trabalho ao menos tem um sentido. Quando acende o lampião, é como se fizesse nascer mais uma estrela, mais uma flor. Quando o apaga, porém, é estrela ou flor que adormecem. É uma ocupação bonita. E é útil, porque é bonita.

Quando abordou o planeta, saudou respeitosamente o acendedor:

– Bom dia. Por que acabas de apagar teu lampião?

Eu executo uma tarefa terrível. É o regulamento – respondeu o acendedor-. Bom dia. Que é o regulamento?

É apagar meu lampião. Boa noite. E tornou a acender.

– Mas por que acabas de o acender de novo?

– É o regulamento, respondeu o acendedor.

– Eu não compreendo, disse o principezinho.

– Não é para compreender, disse o acendedor. Regulamento é regulamento. Bom dia. E apagou o lampião –

Em seguida enxugou a fronte num lenço de quadrinhos vermelhos

– Eu executo uma tarefa terrível. Antigamente era razoável. Apagava de manhã e acendia à noite. Tinha o resto do dia para descansar e o resto da noite para dormir…

– E depois disso, mudou o regulamento?

– O regulamento não mudou, disse o acendedor. Aí é que está o drama ! O planeta de ano em ano gira mais depressa, e o regulamento não muda!

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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