PEC 99: uma ameaça ao Estado laico

A ofensiva de segmentos religiosos na política brasileira parece não ter limites. Poucos brasileiros tomaram conhecimento, mas na última semana foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados uma Proposta de Emenda à Constituição que põe em risco o já frágil Estado laico brasileiro e que pode, de vez, sacramentar o poder de grupos fundamentalistas na política nacional.

Trata-se da PEC 99, de autoria do deputado federal João Campos (PSDB/GO), apresentada há dois anos, após uma articulação entre os parlamentares da bancada evangélica do Congresso Nacional.

A PEC confere às “associações religiosas de âmbito nacional” o poder de “propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade” junto ao Supremo Tribunal Federal.

A Constituição Federal de 1988 estabelece que essa competência é exclusiva do Presidente da República; das Mesas Diretoras das casas legislativas; do Procurador-Geral da República; do Conselho Federal da OAB; de partidos políticos com representação no Congresso; e de confederações sindicais ou entidades de classes de âmbito nacional. Ou seja, apenas entidades e instituições representativas do conjunto da população – independente de cor, gênero, sexualidade, classe social ou crença –  e/ou vinculadas ao processo de elaboração e formulação de leis e atos normativos do país têm tal atribuição.

Então, caso a PEC seja levada à frente e aprovada nos plenários do Congresso Nacional, segmentos religiosos poderão questionar a legalidade de qualquer lei em vigência no país, inclusive em temas relativos a direitos humanos que as lideranças das principais igrejas cristãs consideram ameaças, como liberdade de culto e crença, legalização do aborto e união homoafetiva.

É com a PEC 99 que as religiões cristãs pretendem expandir os seus tentáculos para uma arena em que, até então, têm pouca força: a Justiça. Afinal, nas esferas do legislativo e nos meios de comunicação, esses segmentos já vão muito bem, graças a Deus.

Para se ter uma ideia, a bancada evangélica é a que mais cresce no parlamento brasileiro, tendo aumentado em 50% os seus representantes nas últimas eleições para o legislativo federal. São 63 pastores, bispos, missionárias e lideranças religiosas que compõem a maior bancada suprapartidária do Congresso Nacional.

Um fato que está na ordem do dia e exemplifica bem a força evangélica como um bloco orgânico, ideologicamente bem definido e poderoso dentro do Congresso Nacional é a escolha e  permanência de Marco Feliciano, um fundamentalista que tem repetidamente feito declarações racistas, machistas e homofóbicas, na presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.

No que diz respeito à comunicação – principal espaço de formação de ideias, valores e opiniões -, Rede Vida, Canção Nova, TV Século XXI, TV Aparecida, RIT, Rede Gospel, Rede Record, Rede Mulher e Rede Família são alguns dos grupos de rádio e televisão controlados por católicos ou evangélicos. Além dessas, CNT e TV Gazeta têm boa parte de suas programações ocupada por missas e cultos diários. Bandeirantes e Rede Globo, duas das principais emissoras do país, também transmitem celebrações religiosas. Até mesmo a televisão pública federal, TV Brasil, transmite todos os domingos missas da Igreja Católica. Ainda sobre a mídia, o atual presidente do Conselho de Comunicação Social, órgão vinculado ao Senado Federal, é ninguém menos que Dom Orani Tempesta, arcebispo do Rio de Janeiro e diretor do grupo Rede Vida. Isso sem falar nas milhares de rádios comunitárias pelo Brasil afora que são invadidas e utilizadas pelas igrejas.

Enfim, é visível a influência das forças religiosas na política. As últimas eleições presidenciais, por exemplo, foram um termômetro dessa situação. Quem não lembra das declarações dos dois principais candidatos – Dilma Rousseff e José Serra – sobre a questão da legalização do aborto, quando abandonaram a perspectiva da saúde pública e dos direitos das mulheres e optaram por tratar o assunto pelo prisma do que pensam as igrejas cristãs?

Por isso, a PEC 99 não é algo isolado, mas uma nova e, talvez, principal ofensiva das igrejas católica e evangélicas na política nacional. Por isso, mais que a antiga discussão entre religião e política, a PEC 99 é uma afronta ao caráter laico do Estado brasileiro, já que viola a separação fundamental entre Igreja e Estado e põe em risco a convivência democrática entre os que se identificam e os que não se identificam com determinado segmento religioso e ainda com os que não professam qualquer religião. Por isso, a PEC 99 é, acima de tudo, uma afronta à democracia brasileira, já que privilegia segmentos religiosos que ideologicamente são contrários, por exemplo, aos direitos de minorias sociais e grupos vulneráveis.

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Reproduzo abaixo um texto do jornalista Leonardo Sakamoto, publicado em seu blog. Reproduzo aqui porque me sinto integralmente contemplado com a provocação feita por Sakamoto.

Classe média sofre: o que te irrita de verdade?

Não me irrito com o fato de uma mulher ganhar menos que um homem exercendo a mesma função, com a mesma competência, na mesma empresa; Nem com o atropelamento de ciclistas e pedestres por conta da ignorância coletiva de uma cidade motorizada; Nem com o surgimento imediato de centenas de sem-teto após desocupações patrocinadas pela especulação imobiliária; Nem com ruralistas que tentam aprovar leis que promovem terra arrasada nas florestas do país; Nem com quem prega que índio é tudo bêbado e indolente, feito os “primos” deles, os bolivianos, que vêm emporcalhar a cidade; Nem com quem defende a justificativa de crimes passionais para atenuar um homicídio; Nem com pretensos deputados patriotas que acham que estão defendendo a nação ao passar a régua sobre direitos dos trabalhadores, rifando a qualidade de vida das futuras gerações; Nem com aquela gente fina que sobe o vidro do carro ao ver um negro pobre no cruzamento; Nem com amebas que acham que simplesmente tocar em uma pessoa com HIV positivo mata; Nem com juízes que concedem autorizações para que crianças com menos de dez anos trabalhem e defenestrem sua infância; Nem com autointitulados representantes do divino que adorariam ver mulheres que abortaram ardendo, não no inferno, mas por aqui mesmo; Nem com quem pensa que sonegar nada mais é do que fazer justiça fiscal com as próprias mãos; Nem com homens da lei que fazem bico de jagunços e tocam o terror, adubando o chão da Amazônia e da periferia de São Paulo com sangue; Nem com idiotas que espancam gays nas ruas porque não conseguem conviver com a diferença; Nem com pais e mães que acham que trabalho infantil enobrece o caráter; Nem com militares da reserva que ficam tomando chá da tarde com bolinhos de chuva, falando mal da democracia e arrotando tortura; Nem com o trabalho escravo e quem diz que ele não existe por lucrar com ele; Nem com filhinhos-de-papai que queimam índios, matam mendigos e estupram meninas por aí, pois sabem que ficam impunes; Nem com aquele pessoal funestro que prefere ver uma pessoa urrando de dor em uma cama de hospital ou sedada de morfina 24/7 do que lhe conceder o direito de finalizar a própria vida; Nem com empresários de sorriso amarelo que, na frente das câmeras, dizem que vão mudar o mundo e, por trás delas, poluem, destroem, exploram, enganam; Nem com administradores públicos que adotam políticas higienistas para expulsar os rotos e remendados das ruas das cidades; Nem com aqueles que consideram uma aberração um casal do mesmo sexo adotar uma menininha linda; Nem em quem bate em mulher porque acha que é homem.

O que me irrita, de verdade, e me tira do sério, são esses impostos altos que machucam os nossos sonhos de consumo.

PS: A nossa classe média é ridícula.

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