Por que fazer Amorosa chorar? – Araripe Coutinho

Por que fazer Amorosa chorar?

 

 

Uma cantora como Amorosa, vertente mais expressiva da nossa alma brasileira, voz tomada de tom próprio, uma Billie Holliday do Nordeste – se fosse uma negra seria uma diva do jaz, do blues de reconhecimento internacional -,  não merece, nem precisa passar por situações de constrangimento pessoal, nem público, nem de nenhuma outra ordem, porque nasceu pronta, com uma voz rara, interpretação única, própria, capaz de dar vida á qualquer  música – do hino nacional ao maracatu, do xaxado, da bossa nova, da MPB mais genuína, do xote, do baião, do samba.

Claro que a sua carreira, mesclada de necessidade de sobrevivência num mundo cão, mulher sozinha, contrita, esperançosa ainda que algo aconteça, desde aquele dia em que ganhou o concurso do Chacrinha da Rede Globo, o Canta Nordeste e tantos outros, carece de um investimento seguro, um produtor, uma estratégia de marketing. Seus trabalhos têm sido, todos, uterinos, paridos com dor, à luz de um candeeiro, como uma voz solitária que canta para ninguém. Não são obras primas, ainda, mas se vê, uma cantora de personalidade, uma Elza Soares, uma Vanessa da Mata, uma Bebel Gilberto, separando os estilos, interpretando ali naquelas faixas, em pequenas prensagens, que levam a cantora a vendê-los a amigos empresários e morrem ali, os discos, esquecidos, perdidos, presenteados a qualquer transeunte que diz: “me dê um, eu adoro Amorosa”.

A verdade é que até hoje, Amorosa não recebeu o tratamento que merece. Vive à mercê de shows esporádicos no São João, micaretas, carnaval –tudo muito pouco, muito nada para a grandeza desta artista. Mas as pessoas passam e dizem: “tá fazendo uns showszinhos – graças a Deus”. Showszinhos mesmo. Mas nada que possa dar a esta sobrevivente da música seis meses de descanso para a  produção de um disco.Contratam-se shows hoje como se estivessem comprando latas de sardinha, como se fossem corpos no IML à espera de um reconhecimento. O artista em si não existe para estas pessoas, são vistos como meros objetos, produtos que podem subir ao palco e fazer a “galera” se divertir, sem nem se quer saber quais as suas mazelas, suas necessidades, suas realidades. Artista sergipano é imbóglio, sucata, descarrego de consciência para quem contrata, porque Padre Zé Maria agora é forró, Reginaldo Rossi é forró. Calcinha Preta é forró. Aviões é forró.

Por que fazer uma pessoa como Amorosa chorar? Por quê? Fico a indagar num país de tanta gente incompetente, sem talento algum ocupando tantas posições no mundo das artes? O  que se pode fazer para resgatar um talento como o de Amorosa, ainda não mostrado totalmente? O que o Governo, a Prefeitura, as Secretaria de Cultura, as Fundações de empresas privadas, podem fazer por esta preciosidade que temos e desprezamos? Há uma ausência de política cultural, projetos ousados, investimento certo em direções outras.

Padecemos de uma concessão do absurdo. Aceitamos de goela abaixo tudo o que nos é imposto por aviões do forró, calcinha preta, azul e amarela, kalypso e deixamos morrer à míngua um talento como o de Amorosa, filha da mesma terra de onde veio Oviêdo Teixeira e João Carlos Paes Mendonça, dois dos mais representativos nomes de sucesso empresarial e empreendimentos  que esta terra do Cacique Serigy já teve notícia.

Amorosa não é só um nome. Não vai surgir outra daqui a 50 anos, é uma aparição única, que Deus só dá a poucos escolhidos. Shows à granel, discos paridos com sacrifício e entrevistas no dia do aniversário da cidade não registram o real valor de uma cantora deste porte. Já há a merecer uma exposição com curador a trajetória da cantora, com instalações, fotografias, áudios e vídeos. Vamos esperar que morra a cantora e padeça de vez o seu talento. Não há diretoria de projetos nas Secretarias de Cultura e Fundações. A cultura é de eventos, tupiniquim, esquizofrênica, insossa e provinciana, pra não dizer primária, basta ver os convites que chegam às nossas mãos. Amorosa é vítima desses atropelos, desses desmandos, dessa falta de visão contemporânea, de futuro, de pensar a cultura como obra de arte finalizada, não sucateada, remanejada, armengada, como se fôssemos bonecos de manuseio. Obrigação do Estado, do Município promover os seus artistas, dar condições aos mesmos de ampliar seus horizontes, cumprindo a missão primordial de memorializar o talento.

O Ministério Público deve cobrar do poder público ações a favor dos artistas. Deve intervir nos Municípios. Como Socorro, um Município com uma população à beira e abaixo da miséria faz um São João de mais de um milhão de reais, enquanto a TV mostra que as pessoas não podem chegar em casa nem na escola porque a rua está alagada, cheia de lama, além da fome, da peste, da miséria total, do desprezo para com os canteiros, praças, monumentos, quadras e postes sem lâmpadas e tome cachaça e banda: circo, porque o pão nunca chega.

A tradição, o resgate da sergipanidade, a preservação, a memória, nada disso tem sentido se a gente não consegue conduzir a contemporaneidade para um futuro de valor e reconhecimento.  Amorosa não é talento para está mendigando cotas para prensar discos e mandar buscá-los pela transportadora. É voz única, rara, magnânima. Que este Estado tem que valorizar e honrar. Por que fazer Amorosa chorar? E até quando?

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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