Não sou adepto do velho programa dominical em que se fica plugado diante de um aparelho de TV, torcendo para ser premiado com alguma coisa inteligente pronunciada pelo bom samaritano Gugu ou seu fiel seguidor Faustão. Mas quando o tempo me obriga a ficar em casa, aproveito para ficar conversando ou brincando com os meus filhos, algumas vezes assistindo a um bom filme ou a um programa de conteúdo educativo. A conversa aqui tratada surgiu quando nós estávamos assistindo a um programa dedicado ao mundo animal, mais precisamente sobre a dura sobrevivência no fundo do mar.
O documentário mostrava a alta competitividade na busca de alimentos, ressaltando a perfeição do ecossistema, cada uma das espécies tendo uma utilidade específica. Não raro o mesmo personagem era simultaneamente predador e vítima da mesma dramaturgia, mesmo porque a caça e o caçador integram o mesmo elenco da novela conhecida como natureza. É bem verdade que alguns personagens focados parecem caber mais no papel de meros figurantes, pois entram em ação muito mais para servir do que para ser servido.
Pois bem, em determinada altura do documentário, sempre que era focado um predador marítimo, aparecia a sardinha como sendo o seu alimento predileto. Era tiro e queda, ou melhor escrevendo, era só o predador resolver pescar o seu alimento, lá vinha uma sardinha para saciar a sua fome. Era tanta sardinha alimentando os artistas principais, numa aparente injustiça, que o meu filho mais velho, como se lendo o meu próprio pensamento, assim gritou: – Veja meu pai, as sardinhas são os gnus da floresta.
Era exatamente o que seu estava pensando naquele momento, as sardinhas são como os gnus, nasceram para saciar a fome alheia, cedendo suas próprias vidas como oferenda para a natureza. Mesmo sabendo que nunca receberão um elogio daqueles que se alimentam de suas carnes, tampouco uma homenagem pós-morte, eles parecem felizes, pois sempre andam em ruidosos e agitados cardumes/bandos. Talvez assim ajam porque sabem que a natureza não permitiria a extinção de qualquer um de seus filhos, seus predadores não são páreos para a fertilidade e o amor que possuem.
Mas as sardinhas e os gnus não são os únicos figurantes na natureza, as florestas de pedras plantadas nas cidades também têm produzido personagens que são criados para servir à fome alheia. Dentre estes é de se destacar os ônibus, que são úteis meios de transporte da população, essenciais para que o povo não se perca nos caminhos da vida. Os ônibus também têm outras utilidades, a exemplo de alimentar empresários e financiar campanhas eleitorais, não raro de forma oculta e suspeita.
E são os ônibus, como seus parceiros de sacrifício, os primeiros a serem tombados nas mãos dos predadores. Quando os traficantes querem demonstrar que controlam o Estado, logo determinam que ônibus sejam assassinados. Quando taxistas ou topiqueiros clandestinos querem externar as suas insatisfações, saciam a sua fome queimando ônibus, como também fazem os moradores-usuários sempre que se revoltam com a triste vida em que são submetidos.
Agora o novo figurante da moda é o Poder Judiciário, aquele que tem a utilíssima finalidade de saciar a fome de Justiça que atinge a cidadania brasileira, já cansada de exploração, prepotência, corrupção e impunidade. Não obstante a sua utilidade pública, o Judiciário se vê cada vez mais dolosamente atacado e reduzido na sua importância constitucional. Algumas vezes abatido pelo fogo amigo de seus membros, especialmente quando acusados da prática de corrupção, nepotismo e, como confessou o próprio Ministro Nelson Jobim, de contrabandear artigos da própria Constituição Federal.
Ônibus quebrados não servem para resolver os problemas criminais ou sociais que lhes tiram a vida. Poder Judiciário enfraquecido não interessa aos que precisam de um Brasil que respeite o Estado Democrático de Direito. No mundo dos homens não sobra espaço para predadores sociais ou para que se perpetue o emprego de figurante.
Não sei o que fazer para ajudar as sardinhas e o gnus, pois interferir na natureza seria arriscar quebrar o seu bem equilibrado ecossistema, condenando a extinção vários outros viventes. Entretanto, em se tratando da ação predatória executada pelos homens, perdoar os que depredam e matam tem efeito completamente inverso, pois neste caso correremos o risco de tornar extinta a cidadania. Não se permitir que o poder paralelo assassine os transporte públicos ou que se desmoralize o Judiciário são medidas de resistência, necessárias para que se mantenha o equilíbrio social.
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(*) Cezar Brito é advogado, conselheiro Federal da OAB e presidente da Sociedade Semear.
cezarbritto@infonet.com.br