“A pior democracia é preferível à melhor das ditaduras”
(Ruy Barbosa)
Como advertiu o Ministro Marco Aurélio Mello do Supremo Tribunal Federal, “vivemos tempos estranhos”.
Em tempos de sobreposição do Estado policialesco frente ao Democrático de Direito, onde o império da lei é substituído pela moral do senso comum, influenciada pela opinião publicada, e o autoritarismo, disfarçado pelo populismo punitivo, reforça a repressão seletiva e estigmatizante do Direito Penal, com apoio da mídia sensacionalista e da espetacularização do processo penal, que ignoram a presunção de inocência, tornando regra a prisão provisória, enquanto a liberdade é trocada por delações, e que o devido processo legal é excepcionado por soluções inéditas a viabilizar festejadas operações policiais, enfim, em tempos em que os guardiões da Constituição são os primeiros a reescrevê-la, reduzindo-lhe o alcance dos seus postulados fundamentais, a advocacia, notadamente a criminal, passa a ser criminalizada.
Tomou conta do país uma fúria punitivista, nunca vista, desde os anos de chumbo, numa lógica cruel de que “os fins justificam os meios”. Com apoio da mídia, agigantam-se os órgãos de controle, investigação e coerção, avolumam-se os discursos de ódio e a intolerância, mitigam-se garantias em nome da eficiência penal, enquanto o guardião da Constituição, iluminado pelos holofotes, deixa-se seduzir pelos encantos da superexposição midiática, alargando os limites dos autos e embarcando num ativismo judicial sem precedentes, aproveitando-se da inércia e descrédito dos demais poderes da república.
Nesse contexto, o STF, ao invés de ser a última palavra de garantia do cidadão, passa a ser o seu poderoso algoz, flexibilizando e relativizando cláusulas pétreas, em nome de um populismo penal midiático. Assim, passamos a viver sob os ditames do judiciário, nos mais variados aspectos e segmentos.
O jurista Lênio Streck tem sido um crítico do ativismo exacerbado que tomou conta do Supremo Tribunal Federal, estabelecendo o que chamou de “governo de juízes”, camuflado pela retórica da eficiência e justificado pela ineficácia do parlamento.
A propósito, a crítica de Streck me fez lembrar que, há muito tempo, o jurista do século XX, Doutor Ruy Barbosa, advertiu que: “a pior ditadura é a do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer.”
Em nome de uma cruzada contra a capciosa impunidade – estatisticamente, o Brasil é um dos países que mais prende no mundo – e do fantasmagórico combate a criminalidade, impera-se o “vale tudo” processual, onde para segregar se admite provas ilícitas, prisão provisória sem cautelaridade, divulgação de dados processuais sigilosos, grampos e invasões em escritórios de advocacia, cerceamento de defesa técnica, restrição ao habeas corpus e até a gravação dos diálogos entre advogados e presos, já proposta pelo constitucionalista e atual Ministro do STF Alexandre de Moraes, enquanto Ministro da Justiça…
Por outro lado, através de discursos demagógicos, são propostas medidas contra a corrupção, que, na verdade ou na prática, buscam atingir o direito de defesa do cidadão.
A questão se agrava quando magistrados passam a ser nominalmente conhecidos pela população, como políticos ou pop stars, frequentando diariamente o horário nobre dos telejornais, julgando (jogando) “pra galera” e fora dos autos, sob o aplauso fascinante de parte da população, chamada de “voz das ruas”, que os elege heróis ou salvadores da pátria.
Não precisamos de heróis. A história nos ensina que estes, não obstante a carência e crença popular, existem somente nos quadrinhos, pois, via de regra, tornam-se ditadores populistas, vide, por exemplo, a biografia de vultos da nossa história. Precisamos sim de cultura e educação para nos livrar da alienação e democraticamente fazer melhor uso do poder que emana do povo.
Não se discute a necessidade de investigação rigorosa dos desmandos e da corrupção que há muito assola o país, bem como o combate à impunidade tão decantada, mas que superlota nossos presídios, no entanto, por mais nobres e necessários que sejam esses fins punitivistas, isso não autoriza a flexibilização de direitos e garantias ou o emprego de meios ilícitos para alcançá-los.
Ora, se para condenarmos um suposto torturador, tivermos que subjugá-lo à tortura, então, que se o deixe impune. Essa conclusão, não representa só uma garantia individual para o tal réu, mas sim regra para todos os cidadãos, indistintamente. Afinal, se hoje quem sofre a tortura é o torturador, amanhã poderá ser qualquer um de nós, daí, advém a estrita necessidade de se exigir a legitimidade dos meios como conditio sine qua non de alcance dos fins.
O grande desafio da democracia de direito é fazer as pessoas compreenderem que o respeito às regras do jogo e a defesa do outro significam, sobretudo, a legítima defesa própria, pois nunca se sabe quem será o próximo. Por isso, exige-se do Judiciário julgamentos conforme as provas e normas, e não com as íntimas convicções de pretensos heróis justiceiros. Não se pode trocar provas por convicções.
Se há “heróis” é porque há “vilões”, conclusão lógica. Agora, como dantes, estamos a escolher o novo vilão do momento, busca-se então atacar não só o acusado (alvo imediato), mas também aquele a quem compete postular pela garantia do devido processo legal: o advogado (alvo mediato).
Para tanto, a mídia cumpre o seu papel em incutir no senso comum a alienante ideia maquiavélica de que o advogado é o “defensor de bandidos”, e, só por isso, deve ser combatido. A intenção é clara, demonizar a advocacia para criminaliza-la, tornando os alvos imediatos presas mais fáceis.
Dissemina-se então, contra legem, a oportunista ideia de que o bom advogado é o mero colaborador com a “Justiça” e não mais o corajoso profissional, referido pelo saudoso Sobral Pinto, pois não interessa ao sistema penal o causídico combativo e aguerrido, mas sim o acovardado, apequenado, pacato e subserviente profissional, subordinado aos ditames do sistema penal.
Essa, no entanto, não é uma simples visão míope, mas sim uma calculada constatação de que não há maneira mais eficaz para o alcance dos fins do que a destruição do último bastião da dignidade dos alvos imediatos, como meio necessário para alcance do objetivo.
Assim, para conquistar as massas ávidas por um herói, apela-se à perigosa e sedutora tese da defesa social para justificar as medidas de exceção e o desrespeito aos direitos individuais.
Desse modo, fértil se faz o terreno para os abusos legitimados” pelo alienado senso comum, daí, semeia-se a intolerância, o ódio e o medo, regando-se com noticiários sensacionalistas, até a colheita do “passaporte” para violação de direitos fundamentais, sob o discurso retórico de combate a impunidade e a criminalidade, invertendo-se a lógica constitucional, cujas garantias deixam de ser oponíveis ao Estado para militarem em favor do leviatã.
O maior risco, ainda despercebido pela sociedade, é que a seleção do “vilão” não é eterna, mas sim flutuante, conforme a maré dos interesses do sistema. Portanto, o discurso utilitarista oculta o que é mais pernicioso à democracia de direito, o xeque à observância futura das garantias fundamentais do cidadão.
Considerando que nos nuviosos tempos atuais a consciência da necessidade de salvaguarda dos direitos fundamentais não tem acolhida, roguemos que, ao menos, o temor do amanhã e de quem serão os novos vilões faça com que o combalido direito de defesa, o garantismo penal e os direitos fundamentais do cidadão possam retomar o status quo ante em nosso sistema penal constitucional, caso contrário, viveremos um velado Estado de Exceção à Constituição.
Contudo, como alento, de tudo isso, uma coisa é certa, os advogados e advogadas, como sempre, seguramente, serão as vozes que se levantarão em defesa dos futuros inimigos do sistema, já que ao menos a história nos conforta com a certeza de que estes nunca se furtaram ao papel contra majoritário e, por vezes impopular, de formar linha de frente na luta pela democracia e pelas liberdades, fazendo-se, por isso, constitucionalmente indispensáveis para a administração da justiça, custe o que custar.
Aurélio Belém do Espírito Santo
Advogado e professor