“A poemática de Núbia N. Marques”, por Gustavo Aragão

Ao ser convidado pelo ilustre acadêmico e presidente da magna academia das letras sergipanas, José Anderson Nascimento, para conferenciar algo sobre a poética universal, decidi, por bem, escolher uma poetisa sergipana. Escolhi ninguém menos que Núbia Nascimento Marques. Ao tomar tal decisão senti uma certa inquietação tomando conta dos meus pensamentos, sendo assim, a curiosidade e a necessidade de conhecer essa mestra sergipana das letras saltou-me às mãos. Então, dei início a uma procura incansável sobre a literatura que desenvolveu, sua vida e conseqüentemente sobre a sua obra. A vida e a obra de Núbia Marques são um todo, que se funde, se confunde e se complementam. Centrarei a minha abordagem, mais especificamente, no legado que nos deixou no campo poético.

 

Núbia Marques brotou em solo aracajuano no dia 21 de dezembro de 1927. Cursou o primário no Colégio Menino Jesus, o Ginásio e o Clássico no Colégio Atheneu Sergipense, onde integrou a Arcádia Literária Estudantil. Graduou-se em Serviço Social e era Mestra pela PUC de São Paulo. Ensinou o 1º e o 2º graus, além disso, foi professora da Universidade Federal de Sergipe. Geriu o Departamento de Cultura e Patrimônio Histórico e presidiu a Fundese.

 

A vocação de artista bradava em suas entranhas e, por isso, no decorrer de sua vida dedicou-se à pintura e ao desenho. Em 1948 transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde pôde freqüentar a Sociedade Brasileira de Artes Plásticas. Logo após o seu casamento regressou à sua cidade natal, onde se fixou em definitivo.

 

Dez anos mais tarde, com a morte do seu filho, Valério, ela estréia na literatura com o livro de Poesias “Um Ponto e Duas Divergentes”. Sucedido por Dimensões Poéticas, Máquina e Lírios, Baladas do Inútil Silêncio e Verde Outono (em ambos estabeleceu parceria com Carmelita Pinto Fontes e Gizelda Morais), Geometria do Abandono, Todo Caminho É um Enigma e Poemas Transatlânticos. Ademais escreveu romances e contos. O livro “Dente na Pele” foi a sua primeira obra na arte do conto, neste ela ultrapassa e supera a corriqueira narrativa, livro que oscila do trágico ao cômico, do lírico à denúncia das injustiças sociais, onde critica o seu tempo, através de um linguajar próprio, enxuto, permeado de escárnios. Lançou em 1967 o romance Berço de Angústias, romance de feição psicológica, que visa denunciar a condição de extremada subserviência da mulher, desde a infância. Já na década de 1980 publicou O Passo de Estefânia (em três edições), mostrando uma nova mulher: mulher que luta pela sua sobrevivência, por um mundo novo e uma sociedade muito mais equilibrada, romance neo-realista, delator das agressões e repressões contra a figura feminina, possui uma linguagem forte, densa. Essa obra foi traduzida para o alemão e lançada em Bremen, na Alemanha e em solo Lusitano. Em 1992 lançou O sonho e a Sina. A partir desse momento ingressou no âmbito da pesquisa lançando João Ribeiro Sempre. Foi folclorista, escreveu artigos em jornais da capital e publicou os livros Aspectos do Folclore em Sergipe e o Luso, o Lúdico e o Perene. Para comemorar seus setenta anos de existência e o quadragésimo ano de imersão no universo literário que a transbordava e que a cercava, Núbia lançou em 1997 Caminhos e Atalhos. O livro Do Campo à Metrópole foi lançado postumamente em 1º de setembro com o apoio da empresa G. Barbosa e pela família de Núbia.

 

No dia 26 de agosto de 1999 Núbia deixa saudades e vai rumo ao etéreo eterno nos deixando um retrato seu, revelado em palavras (em suas obras) para que possamos sentir, sempre, a sua presença, como de costume marcante, de coragem e força.

 

Podemos considerá-la, sem sombra de dúvidas, uma poetisa de marca maior, por ter sido uma válvula que impulsionou a linguagem a nos falar, assim deixando-a em condição de nos falar. Núbia foi e é, ainda, pela força que brota dos seus versos excelsos “um poeta” no sentido mais pueril da palavra, porquanto mediante a imaginação, recolheu e fecundou as imagens exteriores, tornando-as vivas, utilizando-se do seu eu mais subjetivo e particular no intuito de repensá-las.

 

Essa grande poetisa, assim como todos os poetas, escritores e pensadores do universo, serviu como um canal por onde passaram as idéias; idéias estas que não são congênitas ao ser humano nem ao isolamento, entretanto é através do homem, que se manifestam.

 

A poesia de Núbia não inventa os termos nem a linguagem em que se insere, porém transforma umas e outras e, assim, as compõe.

 

Já dizia Claudel:

“As palavras que uso

São as palavras de todos os dias e não,

Deveras, as mesmas”

(…)

 

Núbia Marques manteve-se, sempre, fiel à poesia, mesmo quando se dedicou a outros gêneros como o conto, a crônica, o romance e aos relatos das suas pesquisas, mesmo quando teve que se dedicar a seus quatro filhos ou aos seus alunos, ao exercer a sua profissão de professora. No livro “Um Ponto e Duas Divergentes”, ponto de partida da sua caminhada pelas veredas literárias, os poemas que o integram datam de 1947 a 1958. Sendo assim, o período mais fértil e de maior concentração de composições poéticas está nos anos de 1953 e 1954 quando ressoa em seu peito a dor da perda do seu filho. Fato que vai transparecer, eclodir em seus versos saudosos, lúgubres, melancólicos como:

 

(…)

eu vi o meu sonho para

nunca mais…

 

Essa publicação se deu como um obstáculo, que incitou em Núbia o desejo de ultrapassar mais “Um Ponto” difícil de ser vencido em sua história. Potência (de 1956), o último poema do livro, talvez reflita muito bem esse momento de transcendência e transitoriedade em que a vida da autora se encontrava à época.

 

“os poemas do não ser

os poemas que ainda hão de brotar,

os que perambulam, inutilmente

em busca de expressão…

todos eles estão em ti, adormecidos, quietos felizes

(Potência,1956)

 

No mundo das palavras estão os poemas, que querem ser escritos e acarinhados. Estão sós e mudos, tranqüilos… Quietos. É preciso pensar a palavra, conviver com as palavras, lapidá-las, desprezar os excessos para, então, realizar o poema. Foi assim que Núbia fez. Expressou suas perdas e danos, olhou para dentro de si mesma e lá encontrou uma jazida auriférrea imensurável, e, repentinamente, voltou-se para o outro, para o mundo, desvendando-se célula totipontente fora de si mesma. Ao mergulhar em si mesma, Núbia se deparou com o mundo já sintetizado.

 

Na obra “Dimensões Poéticas” o seu olhar enquanto poieô (poeta) visita outras dimensões. Núbia se revela possuidora de três dimensões poéticas: sensibilidade, metafísica (transcendência) e transverberação. Ela se manifesta mais delatora, reclamante, combativa, contudo, ao mesmo tempo, maternal e filial (a notamos assim nos poemas: Prisma, Refração, Eternidade Materna, Unidade). Núbia confessa que sofre certa influência do concretismo. Tal influência pode ser notada explicitamente no último poema do livro que diz:

 

(…)

“Busco poesia concreta

que comunique

comova alucine!”

 

“Baladas do Inútil Silêncio” aparece na época em que o regime de exceção colocava a poesia, ou melhor, a palavra sob vigilância. Nesse livro ela estabeleceu uma parceria com Gizelda Morais e Carmelita Fontes.

 

Em “Maquina e Lírios” propõe como temática a sua estupefação diante das transformações céleres do mundo, os episódios mundiais do final da década de 60, o embate que se deu entre o avanço da tecnologia e a sombra serena de um passado não muito distante. Essa perplexidade, diante das inovações tecnológicas e de todos os fatos que a marcaram naquela época, vai ser transmitida em seus poemas e podem ser constatadas, até, em alguns títulos que os anunciavam como: Propulsão, Saudade Mecanizada, Cibernética, Óvulo artificial, Fabril, dentre outros.

 

(…)

“tudo é mecânico, matemático

e tem automação celebrizada

tudo é triste tão triste

tal uma dor violenta e estilizada

 

(…)

(Cibernética, pgs: 39,40,41: Máquinas e Lírios.)

 

No livro Geometria do Abandono, editado em 1975, Núbia Nascimento libera suas palavras mais enérgicas, de maneira destemida, vez ou outra em tom altivo, quase folhetinesco. Não analisa a geometria dos seres matemáticos, porém se propõe a analisar o desprezo, em suas formas e dimensões humanas individuais e coletivas.

 

Já em Poemas Transatlânticos podemos constatar um pessimismo insinuado, que podemos observar em poemas como “Maturação”. Seu linguajar, mesmo amargo, seduz por ser ele imbuído da mística, do etéreo e da multiplicidade. Núbia manifesta-se engajada, mas, acima de tudo, aparece comovente. Há termos metaforizados, que procuram decodificar o ser num universo objetivo confuso. A inalterabilidade da objetividade, o cotidiano cronometrado milimetricamente jamais oferecerão pontos de vista como os do livro de Núbia Nascimento. O cosmo empírico quer fabricar modificando a substância. A poesia quer despertar ternura para transformar psiques. Não que ela tenha tal meta por comprometimento, mas é indispensável afugentá-la disso.

 

A um grande poeta, não basta apenas encantar, mas sim comover, além de surpreender através das suas obras. E foi isso que Núbia Marques fez com a sua poesia e a sua prosa. Núbia era impulsionada pelo desejo de contrariar o estabelecido e infringir as estéticas e éticas convencionadas no esteio da sua poesia. Ela submeteu-se, adaptou-se, chegou até a se identificar com seu tempo, contudo não se configurou como uma entusiasta da civilização tecnológica, tendo-a como ordenadora do desenvolvimento material.

 

Núbia N. Marques é, deveras, uma poetisa, que surgiu para nunca mais se dissipar do nosso imaginário. Ela se fez presente e enriqueceu imensamente o campo poético de novas maneiras e expressões. Destaca-se pela arquitetura dos seus versos, mas também pelo discurso, pelos seus meios singulares de manifestação. Sua criação é ao mesmo tempo agressiva e afável, paradoxalmente lírica e prosaica, sempre plena de poesia.

 

Fé no Ofício

não sou poeta

do parecer do carimbo

da hora certa

do relógio de ponto

dos trâmites legais

dos acordos

dos acertos

das mornas convivências

poeta oficial

 

poeta tem que ser

o passo avesso

o grito o protesto

o pulso o murro

o mote o traste

a palavra maldita

o desacerto na próxima tocaia

 

sou poeta que faço

do laço o traço

do cuspe o rastro

do passo o arregaço

do sobejo o farelo

do travo o trevo

do amargo viver

a cada instante

sou poeta

mais nada.

 

(Núbia N. Marques// Livro: Verde Outono)

 

Referências Bibliográficas:

 

Um Ponto e Duas Divergentes, Ed. Livraria Regina Ltda., Aracaju, Sergipe, Brasil, 1959.

 

Dimensões Poéticas, Ed. Livraria Regina Ltda., Aracaju, Sergipe, Brasil, 1961.

 

Máquina e Lírios, ed. Labor, Aracaju, Sergipe, Brasil, 1971.

 

Poemas Transatlânticos, Ed. Átrio, Lisboa, Portugal, 1997.

 

Berço de Angústias – romance – Ed. Gráfica Tietê, São Paulo, Brasil, 1967.

 

Dente na Pele – contos – Achiamé, Rio de Janeiro, Brasil, 1986.

 

MARQUES, Núbia N.. Caminhos e Atalhos: Prefácio de Jackson da Silva Lima; Tradução Paulo Roberto Santos Lima [et. al.]. Aracaju (SE) Brasil; Habitacional Construções S. A.: Segrase, 1997.

 

Revista da Academia Sergipana de Letras, v.1, 1931 – Aracaju. A Academia, v.34, 2000.

 

MIKEL, Dufrenne. O Poético.

 

 

* Gustavo Aragão, poeta e autor de livros infantis

www.infonet.com.br/gustavoaragao

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