Tardif et morose.

Quando Miguel de Montaigne escreveu “Ensaios”, isso nos idos de 1580, escolhera tal título porque representava um contexto de experiência, de experimentação, uma tentativa de prova, de demonstração de uma atitude. Naquele tempo isso equivalia a uma experiência, algo sequenciado à raiz latina de “exagium”, algo mensurado, pesado, medido.

Ensaio, porém, pode ser muita coisa, dizem hoje os modernos dicionários, começando por ‘ato ou efeito de ensaiar, ensaiamento’.

Na rubrica do engenho e arte do Houaiss, o ensaio pode oscilar desde ‘maneira de testar as propriedades mecânicas de material, equipamento etc., usando como parâmetro de normas técnicas e requisitos preestabelecidos’, caso aplicado às Engenharias, como ‘pode conjugar ação ou efeito de testar (algo) ou de agir, sem que se tenha certeza do resultado final; primeira tentativa, experiência’.

Neste particular o ensaio pode ser uma prévia, uma encenação artística exibida intramuros na véspera ou na antevéspera da encenação, algo que em si contém a própria imperfeição do borrão a corrigir, qualquer coisa que não pode existir, nem persistir, por imperfeição, feiura, desonor e até mau odor, porque se perdurar e resistir ficará refém do escárnio, do motejo e do desprezo, e da vaia impondo o conserto, a correção.

Assim, por ensaio em real imperfeição, é-lhe passível o corte na filmagem e no cinema, virar procedimento experimental de tentativa e erro, nas provas físico-químicas, e até na biologia dirimir a ordem da vida, onde o manuseio de cobaias permeia o trauma e o sofrimento de pequenos animais em proveito do “anima nobili”, o homem, aquele que se crê ainda o tal; o ser essencial na criação, aquele que se ousa por supremo, ensaiar até a própria des-criação, em soberana carência de discrição e seriedade. Ou seja, ensaio não é jogo; é treino. Não é ‘a vera’, como se dizia no meu tempo de bola de gude; é ‘a brinca’.

Ah, que saudade das calças curtas e da bola de gude, contemporâneos da ficção de Ubaldo Ribeiro, onde o soldado de polícia só se desdourava como o Sargento Getúlio, quando alienado e desorientado entre o crime e a legalidade, a ignorância e a violência, sem jamais perder a coragem e a obediência, em excedência de valentia, disciplina e fidelidade, assaz resistente à contravenção e à venalidade, mesmo mal remunerado e pouco alimentado.

Tempo em que as mulheres ou algumas delas pediam ao Getúlio valente, que nelas gerasse bravios guerreiros, ousados perante abusados desafios, sem subterfúgios de fugas, por covardia e vilania, como agora em que a vileza vem escudada por amoral legalidade, em documental atestação capciosa, espécie de lesa-razão ao juramento repetido desde Cos, quando não devia, jamais, ser de inspiração maliciosa e sediciosa.

Ou não? O feito de agora representa algo digno da boa ode, da explicitação antifonar de santos, de guerreiros, de heróis, ou mesmo do cidadão comum, pequenino, mas gigante, enquanto varão de Plutarco?

Ou é amorável a pura degradação acasalar entre o Pluto e o Anarco?

Teria sido ou não um excesso de sem-vergonhice, canalhice de péssimo ensaio e exemplo, utilizar o arrimo honesto, desprendido, solidário de doar sangue voluntário, na paga de uma atestação bizarra de fugir da luta, escafeder. E feder! E bote fedentina nisso! Porque na luta, qualquer luta, antes de qualquer coisa os contendores devem se respeitar; para saber perder, inclusive. Por que se é feio perder, muito mais o é conseguir vencer em detração da própria dignidade.

Que me arrime nesta tese, neste ensaio, o que Margarida previra em Fausto vendilhão da própria alma, endemoniado e possuido por Mefistófolis: “Esse homem, o que está a seu lado, / No fundo da minha alma eu lhe tenho rancor./ Em toda aminha vida,/ Nunca no meu coração nada me fez ferida/ Ou inspirou furor / Como o semblante vil desse homem execrado./…/ Sua presença me faz ferver sangue no peito./ Em geral, ser humano eu estimo e respeito;/ E assim como agrada ver-te e te mirar,/ Tenho presente esse homem um horror misterioso,/ Ele bem me parece um biltre perigoso!/ E que Deus me perdoe se o estou a injustiçar!”

Que me perdoe Fausto também, porque não sinto o seu consolo de que “No mundo sempre há uns abutres assim”.

E se os houver, que não me incluam na sua plateia, nem na sua assembleia, conciliábulo de pouca luz, reunião de ralo brilho.

Que Deus me perdoe e os homens também se os estou a injuriar. Mas eu não creio que o safado seja sempre aquele de quem não nos agradamos. O safado, o capadócio, o moleque e o sem-vergonha, todos; individual, coletivo, explicitado por desenvergonhado, ou escondido no anonimato corporativo e mal vergonhado, todos tem seu estofo próprio em DNA detectável. Procure-o, e este será achado como o joio em paisagem de trigo. É erva daninha que ao seu tempo se destrói.

O grande problema é o prejuízo causado por desleixo e descompromisso dos homens que deveriam ser sensatos, justos, probos e diligentes, daqueles que na amorfia sentem-se descentes e complacentes por indiferentes.

Mas os Ensaios de Miguel de Montaigne constituíam opiniões que ele entendia como boas e sãs num momento em que já se sentia “tardif et morose”, isto é: envelhecido e lento, ou sombrio, entardecido e mal humorado. Tudo o que a idade traz, sobretudo na contemplação da ambiência que envilece no gozo e na fruição dos prazeres inúteis em fautor sorriso de hiena.

E se Montaigne já se via aos quarenta anos um “demi-estre”, alguém quase passado, vivido, bem viajado, um cavaleiro andante, sem cansaço nem fome, somente feliz com “le cul sur la selle”, com a bunda no selim, cavalgando pelas estradas do mundo, analisando o homem, seus sonhos e angústias em todas as latitudes e azimutes, outros o põem ao pico da seringa, criando uma ensaio de moléstia, uma epidemia tão bem acantonada quão bem assestada, que suscitou ação diligente de prescrição repousal, de descanso, quietação e folga, que felizmente não foi geral e unânime, só para dizer que se toda unanimidade é estúpida, safada restou a  menoridade, com atestação documentada.

Algo inerente aos espíritos menores em liderança de pigmeu.

E é “tardif et morose”, no sentido fatigado, sombrio, entardecido e mal humorado que ouso exibir este ensaio de repulsa.

Ah, quem me dera ter sido o médico a lhes negar o atestado gracioso. Quem me dera ter sido também o banco sanguíneo para repelir hemácias tão macilentas em falta de brio e moral envergadura.

Que não me prestem, se assim o precisar, a transfusão de um sangue adquirido em mau escambo de farta esperteza e carência de grandeza e doação.  Não!  Não pode ser bom um sangue assim! Um ensaio a provar; uma contaminação a detectar, uma degradação a repelir e evitar. Ou não!? Tudo vale a pena, inclusive quando a alma se apequena?

O mores! O tempora! Até quando os insensatos abusarão da nossa paciência!?

Mas,… Quem são os insensatos se tudo restará referendado e bem aplaudido?

Assim, eis-me inutilmente ensaiando uma revolta tola, enquanto “tardif e morose”, arriscando levar pedrada, mas sem o brilho de Montaigne.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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