Emenda 125 e a relevância no recurso especial

Uma das emendas constitucionais promulgadas em 14/07/2022 (confira no texto “Recorde de emendas e rigidez constitucional: o que fazer?” , publicado em 03/08/2022) foi a de nº 125, que institui o requisito da relevância das questões de direito federal infraconstitucional para admissibilidade do recurso especial.

Trata-se de significativa alteração em tema técnico-processual, de grande impacto no funcionamento do sistema judicial e acesso à justiça.

Com efeito, ante causas decididas em única ou última instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados e do DF, quando se apontasse que a decisão contrariara o direito federal infraconstitucional (contrariedade a tratado ou lei federal, julgamento de validade de ato de governo local contestado em face de lei federal ou julgamento que traduz interpretação à lei federal divergente daquela dada por outro tribunal), nos termos estabelecidos na Constituição de 1988 (Art. 105, inciso III), sempre foi cabível a interposição do recurso especial, a ser encaminhado ao STJ para julgamento. É, afinal, do Superior Tribunal de Justiça o papel de uniformizador da interpretação e aplicação da lei federal (tal qual é do STF o papel de uniformizador da interpretação e aplicação da Constituição Federal).

Agora, com a emenda nº 125, não bastará essa alegação de contrariedade ao direito federal infraconstitucional; para que o recurso especial seja admitido, será imperativa a demonstração da “relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei”, sendo presumida essa relevância nos casos de ações penais, ações de improbidade administrativa, ações cujo valor da causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos, ações que possam gerar inelegibilidade, hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça e outras hipóteses previstas em lei (§ 3º do Art. 105 da Constituição, acrescentado pela emenda 125).

É verdade que somente por decisão de 2/3 dos Ministros que componham o órgão apreciador do recurso especial (Corte Especial, Seções, Turmas) poderá ser rejeitada a relevância (e assim o recurso não ser apreciado no seu mérito), mas a imposição desse requisito confere ao STJ um poder muito amplo para, sem mais precisas delimitações, não admitir a relevância e, portanto, não passar ao julgamento do mérito do recurso. Com isso, causas que envolvam a aplicação do direito infraconstitucional federal poderão ser definidas sem a participação do STJ, simplesmente porque aquela Corte não a tenha considerado relevante.

Nesse sentido, há muita semelhança com o que foi instituído, pela emenda constitucional nº 45/2004, para o recurso extraordinário: a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso como pressuposto de admissibilidade. Decidida a inexistência de repercussão geral (o que só pode ocorrer por decisão de 2/3 dos Ministros), o recurso extraordinário não é admitido e a causa que contenha a questão constitucional de repercussão geral é resolvida sem a participação do STF.

Assim, pode-se dizer que a instituição da demonstração da relevância como requisito de admissibilidade do recurso especial segue a esteira da evolução progressiva e crescente do nosso modelo processual para conferir mais e mais poderes aos Tribunais Superiores (e ao Supremo Tribunal Federal), com vinculação das instâncias de base aos seus precedentes; essa linha, aliás, é a adotada pelo Código de Processo Civil de 2015.

Funciona assim: ao mesmo tempo em que o STF (e, muito em breve, quando aprovada a lei regulamentadora, o STJ) filtra os processos subjetivos que serão por ele julgados, recusando-se ao julgamento do mérito da questão constitucional que não tenha repercussão geral e ao julgamento do mérito da questão federal infraconstitucional que não tenha relevância, seleciona o processo admitido como de repercussão geral e o processo admitido como relevante como paradigma do julgamento da questão de direito para, depois do julgamento do mérito, aquela decisão ser de aplicação obrigatória e vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário.

A propósito do início da aplicação do instituto da repercussão geral (em 2007), tive a oportunidade de apontar, em texto publicado aqui mesmo neste espaço na Infonet (“Nova Jurisdição Constitucional e a Mula de Tales” ), as precisas considerações críticas de Sérgio Sérvulo da Cunha, que reproduzo novamente, por oportuno e aplicável:

 

 

“A partir da Emenda Constitucional n° 45/2004 o sistema sofreu uma guinada fatal: a restauração da argüição de relevância (agora com o nome de incidente de “repercussão geral”) feriu profundamente o controle difuso; e a instituição da “súmula vinculante” o transformou, de sistema misto, em sistema hiperconcentrado. Aí, o controle de constitucionalidade deixa de ser controle do governo por parte do cidadão, e assume uma incestuosa feição de controle do governo por parte de órgãos do próprio governo, mediado por agência que não detém representação política. Significa, portanto, a extensão ao Judiciário das concepções oligárquicas dominantes na “demoelitecracia”. A Corte que tem o poder de acolher ou não um recurso, segundo seu arbítrio, não é republicana: quem não tem o direito de recorrer, e o que faz é apenas suplicar, não é cidadão, mas súdito.

Se o constituinte indicou o STF como “guardião da Constituição” (CF de 1988, art. 102, caput) é porque pretendeu incluir em sua cometência todos os casos de contrariedade à Lei Magna. Esta não se fez para que em alguns casos se dispense o controle da efetividade de suas disposições; nela tudo é relevante, e nela inexiste disposição cuja contrariedade deixe de ter repercussão geral.

Hoje, entretanto, em alguns casos (contrariedade a princípio implícito, contrariedade a conjunto de disposições constitucionais), assim como em todas as hipóteses que não venham a ser consideradas como de repercussão geral, o controle de constitucionalidade estará restrito, praticamente, aos Tribunais Estaduais ou aos Tribunais Federais, de modo que, quanto a esses tópicos, a eles – e não ao STF – é que caberia designar como guardiões da Constituição. (grifou-se) (“O Recurso Extraordinário, a repercussão geral e a mula de Tales”, in Cadernos de Soluções Constitucionais, volume 3, Malheiros, 2008, p. 431).

[…]

Ao invés do acesso amplo à Justiça – previsto como direito fundamental pela Constituição de 1988 – e da co-extensão entre o processo constitucional e os direitos e garantias constitucionais, passou-se a adotar como princípio fundamental na organização judiciária a diminuição do volume dos processos submetidos à sua apreciação.

Eliminar os processos, ao invés de decidir os litígios, transformou-se na preocupação dominante, principalmente nas Cortes Superiores. Passaram-se a louvar, como comportamento virtuoso, técnicas para eliminar processos tidos como repetitivos ou malconcebidos. O direito das partes? Ora, o direito das partes! Estas passaram a ser presumidas como litigantes de má-fé, seus advogados como escroques. Com o quê ganharam, os pretórios, o suporte moral de que precisavam para se comportarem como a mula de Tales.

Situou-se no grande número de recursos a responsabilidade pela morosidade da Justiça. Como se não fosse o STF, via Poder Legislativo, o responsável pela criação de novos e arrevesados recursos, a cada vez que se intentava um novo óbice ao recurso extraordinário. Eis que, agora, com as sinuosidades da repercussão geral, alcança-se a perfeição, a apoteose da irracionalidade” (grifou-se) (“O Recurso Extraordinário, a repercussão geral e a mula de Tales”, in Cadernos de Soluções Constitucionais, volume 3, Malheiros, 2008, pp. 431-433).

 

 

É verdade que a relevância como requisito de admissão do recurso especial, vindo na mesma esteira da já apontada progressiva evolução do nosso modelo processual para conferir mais e mais poderes aos Tribunais Superiores e vinculação aos seus precedentes, veio para ficar e certamente se consolidará muito em breve em nossa prática processual (assim como já está consolidada a sistemática de aplicação da repercussão geral no recurso extraordinário).

Todavia, parece-me que as observações de Sérgio Sérvulo da Cunha sobre a repercussão geral aplicam-se integralmente para a relevância, beirando a inconstitucionalidade, pela tendência à abolição das garantias fundamentais do acesso efetivo à justiça, que tem, no arcabouço originário determinado na Constituição, a garantia de que causas com apontamento de contrariedade ao direito federal infraconstitucional sejam examinadas em última instância pelo Superior Tribunal de Justiça.

A eventual racionalização do sistema processual e mesmo a apontada celeridade que esse tipo de medida possa proporcionar (ainda por demonstrar-se mais precisamente) não justifica, do ponto de vista jurídico-constitucional, a abolição de garantia constitucional fundamental, cláusula pétrea, inerente ao acesso efetivo à justiça que se integraliza com o efetivo acesso aos Tribunais Superiores e ao STF, independentemente de filtros discricionários (quase filtros autoritários) como a repercussão geral e a relevância.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
Comentários

Nós usamos cookies para melhorar a sua experiência em nosso portal. Ao clicar em concordar, você estará de acordo com o uso conforme descrito em nossa Política de Privacidade. Concordar Leia mais