A Emenda do Orçamento Impositivo

As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal promulgaram, na terça-feira da semana passada (17/03/2015), a emenda à constituição n° 86, que “Altera os arts. 165, 166 e 198 da Constituição Federal, para tornar obrigatória a execução da programação orçamentária que especifica”.

Com efeito, a emenda à constituição n° 86:

a) indica expressamente a possibilidade de emendas individuais parlamentares ao projeto de lei orçamentária, no limite de 1,2% (um inteiro e dois décimos por cento) da receita corrente líquida prevista no projeto encaminhado pelo Poder Executivo, sendo que a metade deste percentual será destinada a ações e serviços públicos de saúde (Art. 166, § 9°);

b) estabelece que a execução do montante destinado a ações e serviços públicos de saúde pelas emendas individuais parlamentares (§ 9º do Art. 166), inclusive custeio, será computada para fins do cumprimento da obrigatoriedade de a União aplicar anualmente pelo menos 15% da receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro em ações e serviços públicos de saúde (inciso I do § 2º do art. 198), vedada a destinação para pagamento de pessoal ou encargos sociais (§ 10º do Art. 166);

c) impõe a obrigatoriedade da execução orçamentária e financeira das programações resultantes das emendas individuais parlamentares, em montante correspondente a 1,2% da receita corrente líquida realizada no exercício anterior, conforme os critérios para execução equitativa da programação (definido o pressuposto de que equitativa será a execução que atenda de forma igualitária e impessoal às emendas apresentadas, independentemente da autoria – § 18º do Art. 166) definidos em lei complementar (§ 11º do Art. 166), excetuados os casos de impedimentos de ordem técnica (§ 12° do Art. 166);

d) inclui caber à lei complementar dispor sobre critérios para a execução equitativa das programações resultantes das emendas individuais parlamentares, além de dispor sobre procedimentos que serão adotados quando houver impedimentos legais e técnicos, cumprimentos de restos a pagar e limitações das programações de caráter obrigatório (§ 9º do Art. 165);

e) prevê que, no caso de impedimentos de ordem técnica que excepcionem a obrigatoriedade da execução das programações decorrentes das emendas individuais parlamentares, deverão ser adotadas as seguintes medidas: 1 –  até 120 (cento e vinte) dias após a publicação da lei orçamentária, o Poder Executivo, o Poder Legislativo, o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública enviarão ao Poder Legislativo as justificativas do impedimento; 2 – até 30 (trinta) dias após o término do prazo anterior, o Poder Legislativo indicará ao Poder Executivo o remanejamento da programação cujo impedimento seja insuperável; 3 – até 30 de setembro ou até 30 (trinta) dias após o prazo previsto no item anterior, o Poder Executivo encaminhará projeto de lei sobre o remanejamento da programação cujo impedimento seja insuperável;4 – se, até 20 de novembro ou até 30 (trinta) dias após o término do prazo previsto no item anterior, o Congresso Nacional não deliberar sobre o projeto, o remanejamento será implementado por ato do Poder Executivo, nos termos previstos na lei orçamentária; 5 – após esse último prazo, as programações orçamentárias decorrentes de emendas individuais parlamentares deixarão de ser de execução obrigatória nos casos dos impedimentos justificados na notificação inicial (Art. 166, §§ 14º e 15º);

f) dispõe que os restos a pagar poderão ser considerados para fins de cumprimento da execução financeira decorrente das emendas individuais parlamentares, até o limite de 0,6% (seis décimos por cento) da receita corrente líquida realizada no exercício anterior (Art. 166, § 16º);

g) determina que se for verificado que a reestimativa da receita e da despesa poderá resultar no não cumprimento da meta de resultado fiscal estabelecida na lei de diretrizes orçamentárias, o montante previsto nas programações resultantes das emendas individuais parlamentares poderá ser reduzido em até a mesma proporção da limitação incidente sobre o conjunto das despesas discricionárias (Art. 166, § 17º);

h) impõe a progressividade do cumprimento da obrigação de a União aplicar anualmente pelo menos 15% da receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro em ações e serviços públicos de saúde, garantidos, no mínimo: I – 13,2% (treze inteiros e dois décimos por cento) da receita corrente líquida no primeiro exercício financeiro subsequente ao de 2015; II – 13,7% (treze inteiros e sete décimos por cento) da receita corrente líquida no segundo exercício financeiro subsequente ao de 2015; III – 14,1% (quatorze inteiros e um décimo por cento) da receita corrente líquida no terceiro exercício financeiro subsequente ao de 2015; IV – 14,5% (quatorze inteiros e cinco décimos por cento) da receita corrente líquida no quarto exercício financeiro subsequente ao de 2015; V – 15% (quinze por cento) da receita corrente líquida no quinto exercício financeiro subsequente ao de 2015 (Art. 2º da EC 86);

i) prevê que as despesas com ações e serviços públicos de saúde custeados com a parcela da União oriunda da participação no resultado ou da compensação financeira pela exploração de petróleo e gás natural, de que trata o § 1º do art. 20 da Constituição Federal, serão computadas para fins de cumprimento da sua obrigação de União aplicar anualmente pelo menos 15% da receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro em ações e serviços públicos de saúde.

Bem se vê que a emenda constitucional nº 86 traz, de inovação significativa, a obrigatoriedade da execução orçamentária e financeira das programações resultantes das emendas individuais parlamentares (em montante correspondente a 1,2% da receita corrente líquida realizada no exercício anterior). Daí ter sido apelidada de “emenda do orçamento impositivo”.

Tivemos a oportunidade de apontar, no artigo “As lições da CPMI do Orçamento de 1993”, o quão perigosa é essa possibilidade, porta aberta para a continuidade de esquemas de corrupção que vêm se repetindo ao longo da história.

Com efeito, por meio das emendas individuais parlamentares – impositivas, pois de execução obrigatória – será possível reproduzir, sem mecanismos mais efetivos de controle, o “esquema das empreiteiras”:

“O ‘esquema das empreiteiras’ funcionava em forma de rodízio em que grandes empreiteiras definiam e loteavam as obras, como um cartel, com garantia de fidelidade de todas ao esquema, incluindo troca e repasse de obras, do que resultava não haver real concorrência, com as empresas atribuindo valores superfaturados às obras. ‘O início do papel das empreiteiras se dá na própria sugestão de obras a prefeitos e governadores. Elaboram elas estudos técnicos sobre as obras e os repassam às autoridades competentes apenas para assinatura. As autoridades interessadas nessas obras passam então a pressionar os ministérios para a liberação de verbas já previstas. (…) O passo seguinte é o da inclusão da obra no Orçamento Geral da União, o que se faz através de dois caminhos: diretamente no DOU (Departamento de Orçamento da União), quando da elaboração da proposta orçamentária original, ou pelas emendas de parlamentares ligados ao esquema. Após a aprovação do Orçamento, o esquema age na licitação – conforme já exposto – e na liberação de recursos, junto ao Poder Executivo. Há fortes indícios de que em todos esses níveis – elaboração de projetos, empréstimos, inclusão no Orçamento, aprovação de emendas e liberação de recursos – o esquema das empreiteiras distribuía ‘participações’, que não são nada menos que propinas, o salário da corrupção.’ ”.

Agora, com as emendas individuais impositivas, ficará desnecessária inclusive a fase relacionada a agir na liberação de recursos junto ao Poder Executivo. Ou seja, além de não efetivar mecanismos de modernização do Estado, na perspectiva do aperfeiçoamento dos instrumentos de controle, com vistas a evitar que novos esquemas de corrupção pudessem continuar a se apropriar de bens e recursos públicos, desde a elaboração do orçamento até a fase de licitações e contratos administrativos (sugeridos também pela CPMI do Orçamento de 1993, conforme exposto no artigo “A perigosa Contra-Reforma Política”), a emenda constitucional nº 86 remove alguns dos poucos obstáculos e entraves aos esquemas de corrupção (“esquema das empreiteiras”) que tanto têm desfalcado o patrimônio público e gerado justa indignação social.

Por fim, não nos impressionemos com a suposta pequena quantia destinada pela emenda constitucional nº 86 às emendas individuais parlamentares (“emendas orçamentárias impositivas”) (1,2% da receita corrente líquida realizada no exercício anterior).

Tome-se por exemplo a execução orçamentária da União no exercício de 2013, cujo relatório aponta que a receita corrente líquida foi equivalente a R$ 656.000.000.000,00 (seiscentos e cinquenta e seis bilhões de reais); 1,2% disso equivale a R$ 7.872.000.000,00 (sete bilhões e oitocentos e setenta e dois milhões de reais), sendo uma quantia muito elevada para a serventia perigosíssima à seriedade com o patrimônio público e à transparência na elaboração e execução orçamentária.

Com a Emenda Constitucional nº 86, a perigosa contra-reforma política já começou com um impulso galopante, na contramão dos interesses e necessidades da cidadania no que se refere ao fortalecimento do sistema democrático brasileiro, com graves prejuízos aos mecanismos institucionais de coibição e combate à corrupção política.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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