A OAB e as Fundações Estatais de Saúde

Matéria publicada no Jornal do Dia do último domingo (30/08/2009, p. 05) revela que o Governador do Estado, Marcelo Déda, em defesa do modelo de fundações estatais de direito privado para a gerência da prestação da saúde pública em Sergipe, criticou a Ordem dos Advogados do Brasil, questionando o porquê de a entidade não ter combatido a terceirização da administração dos hospitais realizada no Governo anterior: “No Governo passado a opção encontrada foi a terceirização, sendo contratada uma empresa da Bahia para administrar os hospitais de Sergipe. Será que os sindicatos estão esquecidos disso? Por que naquela época ninguém da OAB combateu essa medida e não levou para o Supremo aqueles contratos?”.

 

Como Conselheiro Seccional responsável pela elaboração do parecer jurídico que acabou sendo aprovado pelo Conselho Seccional, creio importante aproveitar a oportunidade para esclarecer a atuação da OAB nesse tema tão polêmico.

 

Inicialmente, é necessário registrar que a Ordem dos Advogados do Brasil é uma entidade independente, que não mantém com a Administração Pública ou o Governo qualquer vínculo de subordinação ou hierarquia. Esse status decorre de sua legitimidade histórica e de expressa garantia legal, estabelecida na Lei n° 8.906/94 (que institui o Estatuto da Advocacia e da OAB), no § 1° do Art. 44: “A OAB não mantém com órgão da Administração Pública qualquer vínculo funcional ou hierárquico”.

 

Formada exclusivamente por advogados, e mantida pelas anuidades pagas pelos advogados, a Ordem dos Advogados do Brasil possui, dentre as suas finalidades institucionais, a de defesa da Constituição e dos direitos da sociedade. Tudo conforme prevê a Constituição da República, ao expressar que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil é entidade legitimada à propositura de ação direta de inconstitucionalidade (“Art. 103. Podem propor ação direta de inconstitucionalidade: (…) VII  – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;. Nessa atuação, é tratado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal como “legitimado universal”, ou seja, pode propor essa ação em face de leis e atos normativos que versem sobre qualquer tema, e não apenas sobre temas relacionados à advocacia (não se lhe exige, portanto, a demonstração de pertinência temática).

 

Não é por outra razão, portanto, que a Lei n° 8.906/94, ao indicar as finalidades institucionais da OAB, aduziu ser a defesa da Constituição e da sociedade uma delas: “Art. 44. A Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tem por finalidade: I – defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”.

 

Portanto, a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil não está vinculada a governo “A” ou “B”. Muito pelo contrário, sua atuação independente de governos é garantida pela Constituição Federal e pela Lei n° 8.906/94, bem como pela firme atuação em defesa dessa independência por parte dos advogados brasileiros e de seus dirigentes.

 

Nesse sentido, importa considerar que os diretores, conselheiros e membros de comissões da OAB exercem atividades voluntárias, não sendo remunerados para exercer essas importantes atribuições públicas e cívicas. Daí também decorre a circunstância de que, no mais das vezes, quando atua no sentido de examinar a legalidade de atos e práticas administrativas, em defesa do patrimônio público, da sociedade e da ordem jurídica constitucional, normalmente o faz quando formalmente provocada.

 

Foi o que ocorreu no caso das polêmicas fundações estatais de saúde. Diversas entidades de trabalhadores e de profissionais de saúde, capitaneados pela Central Única dos Trabalhadores, apresentaram, no segundo semestre do ano passado, um requerimento formal, a fim de que o Conselho Seccional da OAB/SE efetuasse um estudo da legalidade desse modelo de fundações que o Estado de Sergipe aprovara em leis estaduais e, acaso verificasse a existência de ilegalidades e inconstitucionalidades, que fossem movidas as ações judiciais cabíveis.

 

O Presidente da OAB/SE, Henri Clay Santos Andrade, ao receber o requerimento, designou-me como Relator. Realizei o estudo da matéria à luz da Constituição e das convicções interpretativas que revelei aos demais Conselheiros na sessão ordinária do mês de novembro do ano passado, em parecer que foi aprovado pelos meus pares no Conselho Seccional.

 

No parecer, desenvolvi argumentação jurídica, como foi requerido e como era o dever da Ordem dos Advogados do Brasil. A conclusão foi pela inconstitucionalidade das Leis Estaduais que autorizaram a instituição das Fundações Estatais de Direito Privado para cuidar as saúde pública sergipana, com: a) encaminhamento de requerimento ao Conselho Federal da OAB, a fim de que fosse proposta, no STF, ação direta de inconstitucionalidade (ADI 4197); b) propositura, pelo Conselho Seccional, de ação civil pública, na Justiça Federal Sergipana, para pleitear a invalidação do então anunciado concurso público (que acabou sendo realizado, pois a liminar não foi concedida), tendo em vista a temeridade de se realizar concurso público para provimento de vagas em fundações estatais que podiam – e ainda podem – ter a sua inconstitucionalidade formalmente declarada, e a sua invalidade jurídica reconhecida (Processo n° 2008.85.00.004610-6-JF/SE).

 

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (que atualmente é presidido pelo advogado sergipano Cezar Britto, o que enche de orgulho a advocacia e a sociedade sergipana), formado por três advogados conselheiros federais por cada estado brasileiro, dentre os quais alguns renomados constitucionalistas, não apenas aprovou o parecer da OAB/SE como, revelando a sua preocupação com a eventual adoção de modelo legal inconstitucional semelhante em outros estados, determinou que fossem oficiadas todas as seccionais da OAB para que informassem a existência, em seus estados, de leis semelhantes, para que também fossem questionadas no STF.[1]

 

A matéria, como se vê, deixou de ter relevância apenas estadual e passou a ter relevância nacional. O Conselho Federal da OAB, ao argüir no Supremo Tribunal Federal a inconstitucionalidade das Leis Estaduais mencionadas, levou em conta também a necessidade de, preservando a Constituição da República, inibir a adoção desse inconstitucional modelo de fundações estatais de direito privado para a prestação de serviços públicos atividades-fim do Estado, como a saúde.

 

Não se trata, portanto, de atuação leviana ou irresponsável. A OAB, ao agir nesse caso das fundações, o fez com seriedade, dedicação e estudo aprofundado. E, ao fazê-lo, levou em conta a sua independência em relação a governos, a partidos políticos ou a o quem quer que seja, tomando como guia a sua finalidade institucional de defesa da Constituição e dos interesses da sociedade.

 

Logo, Sua Excelência, o Governador do Estado, até como ilustre advogado que compõe – embora atualmente licenciado – os quadros da advocacia sergipana e brasileira, deveria compreender e aceitar como natural essa atuação jurídica da Ordem dos Advogados do Brasil.

 

E, se a OAB não atuou no sentido de questionar os contratos de terceirização na área de saúde realizados no “governo passado”, é porque não foi formalmente provocada a tanto.

 

Todavia, registro algumas das diversas atuações da OAB/SE, ao longo dos últimos anos, em defesa da sociedade, da Constituição e do patrimônio público, independentemente do governo de plantão: a) propositura de ação direta de inconstitucionalidade em face da lei que instituiu a taxa de incêndio; b) propositura de ação civil pública com vistas à invalidação de concurso público realizado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe no ano de 2004, eivado de vícios insanáveis e que foi ao final invalidado por determinação da Justiça Federal; c) propositura de diversas ações judiciais contra o programa de transposição das águas do Rio São Francisco; d) propositura de ação judicial com vistas ao afastamento do cargo de ex-Secretário de Segurança Pública (atualmente Desembargador), diante da circunstância de que, à época, era membro do Ministério Público e a Constituição proíbe aos membros do Ministério Público o exercício, ainda que em disponibilidade, de qualquer outra função pública, salvo uma de magistério; e) questionamento dos atos de “autarquização” de empresas públicas e sociedades de economia mista estaduais realizados no governo anterior, “autarquização” essa que, por sinal, foi revertida pelo atual governo; f) firme atuação cotidiana em defesa dos direitos humanos, através de sua combativa comissão temática; g) firme atuação na cobrança de responsabilidades e providências relacionadas à epidemia de dengue ocorrida no ano de 2008.

 

Além dessa incompreensível incompreensão, por parte de Sua Excelência, do papel institucional independente que caracteriza a OAB, o Governador do Estado também surpreendeu ao defender o modelo das fundações que seu Governo instituiu, afirmando que “A relação do Estado com a fundação é lastreada num documento chamado contrato público, em que as metas são estabelecidas. Se aquela direção não cumpre o que foi acordado ela automaticamente será destituída e entrará outra em seu lugar. Se o número de atendimentos, de cirurgias e de redução de óbitos hospitalares não for cumprido, os diretores não irão continuar a frente da instituição. Tudo está amarrado em um contrato público. É essa a diferença, pois temos como controlar o resultado e a qualidade daquilo que será oferecido”. O que surpreende é que tudo isso pode ser feito, à luz do direito, sem necessidade de implementação de qualquer modelo de fundações estatais de direito privado. Essa destituição de dirigentes de órgãos públicos em caso de não atendimento de metas estabelecidas ou em caso de ineficiência administrativa é natural em órgãos da Administração Direta e em autarquias. Não há necessidade de causar todo esse reboliço na estrutura administrativa da saúde pública em Sergipe se o objetivo for esse. Basta aplicar o direito posto.

 

Disse mais Sua Excelência: “É preciso reduziu o preconceito ideológico de rejeitar uma questão não porque é boa ou ruim, mas porque há uma ideologia de que ou é tudo da administração direta ou não presta”. Da parte da OAB não há qualquer preconceito ideológico. Cada um de nós possui a sua visão ideológica do papel do Estado, mas não é isso que está em debate nas ações judiciais promovidas pela OAB/SE. Em debate está se a Constituição Federal permite que a prestação de atividades-fins do Estado pode ocorrer pelo regime jurídico de direito privado, e não de direito público. Se a Constituição da República permite ou não a adoção do regime jurídico da CLT para servidores de fundações públicas (ainda que de natureza de direito privado). Se antes da elaboração de lei complementar nacional (que ainda não foi elaborada), definindo quais as áreas possíveis de atuação das fundações públicas, é possível que tais fundações possam efetivamente ser instaladas e começar a funcionar. Debate jurídico, portanto, e não ideológico. A OAB não está a afirmar que é tudo na administração direta ou não presta, até porque o seu entendimento é no sentido de que a Constituição impõe que a saúde pública deve ser prestada pelo Estado em regime de direito público, e isso significa tanto pela Administração Direta como por meio de suas autarquias (Administração Indireta).

 

Finalmente, disse Sua Excelência: “O que a OAB e os sindicatos precisam entender é que temos que existir em função da sociedade e não o contrário.”. É exatamente por isso, Governador, que a OAB age, inclusive em juízo, quando entende que determinada atuação governamental de qualquer governo de qualquer esfera contraria a legislação e os interesses da sociedade.

 

A OAB não pretende ser a dona da verdade. Nesse imbróglio das fundações estatais de saúde, o Poder Judiciário dará a palavra final. Mas a sociedade pode continuar convicta de que a OAB agiu de modo independente, à luz do direito. E assim continuará. Para o bem da sociedade.

 

 

 

20 anos da Constituição de Sergipe

 

Em 05 de outubro de 2009 serão completados vinte anos da promulgação da Constituição do Estado de Sergipe. Não perca a série de artigos sobre o tema que vêm sendo publicados pelo colega advogado José Rollemberg Leite Neto no “Jornal do Dia”, aos domingos, e que ficam disponíveis, às segundas, sem seu blog: http://justoagora.zip.net./



[1] Todos os fundamentos jurídicos do entendimento da OAB pela inconstitucionalidade, bem como os fundamentos do Governador e da Assembléia Legislativa, pela constitucionalidade, podem ser acessados no seguinte link:

http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?tipoConsulta=PROC&numeroProcesso=4197&siglaClasse=ADI

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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