A renúncia do Papa.

A notícia foi inusitada. Bento XVI, o “Papa Panzer”, aquele que representava o último bastião conservador da Igreja Católica, anunciou ao mundo a sua renúncia, a partir de 28 de fevereiro.

Nas suas alegações, o Papa, tido e havido como intolerante e autoritário, descortina-se em viés humilde e consciente, norteado pelo desapego aos bens terrenos, tudo inerente à pregação do Evangelho: "Após ter examinado perante Deus reiteradamente minha consciência, cheguei à certeza de que, pela idade avançada, já não tenho forças para exercer adequadamente o ministério petrino".

A lição é sobremodo exemplar. Como são poucos os que se contemplam assim, no afadigar da vida, diante da exaustão física, em longevidade lúcida, se contemplando limitado e superado.

Como é difícil reconhecer-se já superado, nos passos tardos ensaiados e na velocidade perdida.

Poucos e raríssimos se veem assim, porque o comum é a imposição bisonha e pouco risonha por imitação de caserna: “Ora, antiguidade é posto!”

E o Papa, cuja missão lhe é vitalícia, em mandato senão monárquico, mas quase igual por pontifical sucessão de Pedro, enquanto apascentador de seus irmãos, o Papa se exemplifica perante seus bispos, pastores e presbíteros, no seu desapego, enquanto gestor e líder.

Eis, portanto, um gesto de notável valor perante os gestores e líderes, não só da Igreja, onde ainda é confortável o abrigo sob seu pálio, sobretudo para os espíritos menores que temem o combate ao sol e treva, bem como para aqueles da caterva pública, que se agarram com unhas e presas aos cargos e empregos de mordomia principesca e simonia republicana.

Mas, se vejo o gesto do Papa como notável, a cambada acima emulada dirá que agir assim é fuga; uma fraqueza a merecer os seus escárnios. Porque a renúncia nunca é vista como um gesto de grandeza.

Abdicar que é sinônimo de abandono, nem sempre é ação de desambição, de desapego, algo que permeie o altruísmo, a elevação do próprio ser. Neste campo de vastas ambições, a renúncia se não é loucura, é-o, sobremodo, covardia.

Digo-o assim, porque no próprio Papado, em dois mil anos de Igreja, quando aconteceu uma renúncia, em 1294, Dante Alighieri inserira o Papa Celestino V na Divina Comédia, justamente num dos círculos do Inferno, só por isso.

É só conferir no Canto Terceiro do Inferno, segundo texto traduzido por José Pedro Xavier Pinheiro (1822-1882), colhido no site http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html 

A mente aquele horror me perturbando, / Disse a Virgílio: — “Ó Mestre, que ouço agora?/ “Quem são esses, que a dor está prostrando?”/ “Deste mísero modo” — tornou — “chora / Quem viveu sem jamais ter merecido / Nem louvor, nem censura infamadora. // “De anjos mesquinhos coro é-lhes unido, /Que rebeldes a Deus não se mostraram, / Nem fiéis, por si sós havendo sido”.// “Desdouro aos céus, os céus os desterraram; / Nem o profundo inferno os recebera, / De os ter consigo os maus se gloriaram”. // — “Que dor tão viva deles se apodera, / Que aos carpidos motivo dá tão forte?” — / “Serei breve em dizer-to” — me assevera. — // “Não lhes é dado nunca esperar morte; / É tão vil seu viver nessa desgraça, / Que invejam de outros toda e qualquer sorte. // “No mundo o nome seu não deixou traça; / A Clemência, a Justiça os desdenharam. / Mais deles não falemos: olha e passa”. // Bandeira então meus olhos divisaram, / Que, a tremular, tão rápida corria, / Que avessa a toda pausa a imaginaram. // E após, tão basta multidão seguia, / Que, destruído houvesse tanta gente / A morte, acreditado eu não teria. // Alguns já distinguira: eis, de repente, / Olhando, a sombra conheci daquele / Que a grã renúncia fez ignobilmente. // Soube logo, o que ao certo me revele, / Que era a seita das almas aviltadas, / Que os maus odeiam e que Deus repele. // Nunca tiveram vida as desgraçadas; / Sempre, nuas estando, as torturavam / De vespas e tavões as ferroadas. / Os rostos seus as lágrimas regavam, / Misturadas de sangue: aos pés caindo, / A imundos vermes o repasto davam.

Na verdade, Dante introduzira o texto grifado de rejeição por Deus e por Satã, pensando no Papa Celestino, um santo Papa, porque sua renúncia permitiu a entronização de Bonifácio VII, um inimigo do poeta.

Mas Celestino V, o ”pontífice eremita”, foi eleito Papa porque a Igreja estava em profunda discórdia no colegiado de Cardeais que possuía 12 componentes apenas, e inaugurara-se uma dissidência por causa da divergência entre dois prelados Colona e três outros da família Orsini, impedindo que a maioria necessária de 2/3 fosse conseguida em dez dias de discussões, votações e desentendimentos, mesmo em clausura.

Ocorre que o tempo não para, a natureza segue seus inexoráveis desígnios, e o Conclave iniciado em 5 de abril de 1292, imaginado como rápido e primaveril, varou o verão, foi contaminado por febres palustres, morrendo um dos eleitores, com os outros fugindo de Roma, restando a Sé de São Pedro acéfala por dois anos.

Um belo dia, o eremita Pietro Angeleri di Murrone, monge beneditino, de extraordinária vida em oração e pobreza, e que vivia numa caverna-mosteiro em Murrone, foi acometido por visões divinas determinando que uma mensagem fosse enviada ao Conclave exigindo pressa na eleição papal, sob pena de castigo celeste iminente aos eminentes discordantes cardeais.

Por medo do castigo, inspiração divina ou excedente sagacidade humana, os cardeais presentes resolveram em unanimidade, indicar o missivista ermitão como novo Papa, tendo Pietro de Murrone aceitado o pontifício com extrema relutância de sua parte, e de alguns cardeais ausentes, porque a sua escolha ensejou insatisfações do grupo dissidente.

Com o título de Celestino V, Pietro de Murrone teve de ser coroado em duas cerimônias. Um fato, inusitado na vida da Santa Cúria, porque só assim foi possível receber o juramento de fidelidade de todos os cardeais eleitores, e eram onze apenas.

De Celestino V sabe-se que foi um bom Papa, embora não estivesse preparado para os desafios da época. A Igreja vivia dilacerada entre interesses de ordem política e secular, sobretudo frente aos desejos do império teuto-espanhol, a monarquia francesa, e o reino dos ingleses plantagenetas.

Afora tais questões de ordem política e secular, o papado conseguira se colocar acima das monarquias abençoando-as ou excomungando-as, inaugurando um período conflituoso, onde não faltaram guerras e até derrubadas de Papas, mantidos prisioneiros longe de Roma, na cidade de Avinhão.

Era um tempo também em que as Universidades descobriam sua capacidade de pensar.

Se Tomás de Aquino revivificara o pensamento Aristotélico, pensadores como Averróis, Abelardo debatiam fé e razão com Bernardo de Clairvaux e São Boaventura. Um debate que a humanidade cristã esquecera, desde os primórdios da Igreja, com Agostinho de Hipona. 

Uma discussão em que não faltava o chiste jocoso que permeia a discussão filosófica. “Por que por a água da razão no vinho puro da sabedoria divina?” Pergunta São Boaventura de Bagnoregio a Santo Tomás de Aquino que lhe respnde em gracejo. “Em Caná, a água foi transformada em vinho.”

Divergências que se insinuavam em prenúncio de perseguições por eréticas a suscitar o autoritarismo curial e a consequente resposta inquisitorial do Santo Ofício que estava ainda para chegar.

De Celestino V, dir-se-á ainda que embora não fosse homem afeito a administração curial, renovou os ditames da encíclica Ubi periculum (Quando houver perigo), da Constituição Apostólica do Papa Gregorio X, um dos seus antecessores, determinando as normas e procedimentos dos conclaves na escolha de um novo Papa, por vacância de morte e renúncia.

Celestino V, um homem místico e piedoso, instituiu a indulgência plenária “Perdonanza de Aquila”, ou Perdão de Áquila, em que os pecados são perdoados em cerimônia anual por conta das comemorações de São João Batista na basílica de Santa Maria de Collemaggio (Áquila).

Destaque-se que anteriormente as indulgências plenárias eram concedidas aos guerreiros das cruzadas e posteriormente a criação excessiva de outras indulgências ensejou acusações de simonia e por via de consequência a Reforma Protestante de Martinho Lutero (1483-1546), mais de dois séculos depois.

Ainda de Papa Celestino V, sabe-se que aos confortos do Vaticano preferia uma vida retirada no seu claustro eremita. Isso levou a desagrados, inclusive porque aumentara o Conclave para 22 componentes, por nomeação de doze novos cardeais.
Desejando, porém, continuar sua vida reclusa, após cinco meses de papado, renunciou ao seu pontificado.

O seu sucessor, Bonifácio VII, eleito dez dias após a renúncia, temendo que a popularidade de Celestino tumultuasse o seu pontificado, levou-o para Roma onde o manteve prisioneiro, até que este falecesse, em circunstâncias misteriosas (veneno ou inanição?), no cárcere da torre do Castelo Fumone, em 19 de Maio de 1296. Tendo sido canonizado, fruto de grande fervor popular, como São Pedro Celestino, em 1313.

Em 28 de abril de 2009, após o terremoto ocorrido em Áquila, Bento XVI visitou a Basílica de Nossa Senhora de Collemaggio, onde se encontram as relíquias de Celestino V.

Em fato revelador de sua intenção renunciante, Bento XVI cobriu estas relíquias com o "pallium", a estola que cada novo Papa tradicionalmente carrega sobre os ombros no dia da sua entronização.

Em 4 de julho de 2010, ao visitar a mesma região, em Sulmona, Joseph Ratzinger elogiou o breve pontificado de Celestino V: "Oitocentos anos se passaram desde o nascimento de São Pedro Celestino V, mas permanece presente na história por causa dos famosos acontecimentos de seu tempo e de seu pontificado, e, especialmente, da sua santidade".

Estaria o Papa aludindo às dificuldades da Igreja contemporânea, ao evocar as "lições" de vida, "válidas" até hoje, num pontificado atormentado?

De concreto, sabe-se que Joseph Ratzinger é um notável pensador católico. Poucos, como ele, exibem conhecimento, cultura e firmeza teológica.

Contra tudo isso arma-se a grande massa de iletrados e descompromissados com o estudo e a firmeza das ideias.

O mundo laico, inclusive vasto conjunto da hierarquia pastoral, está sendo contaminado pelo “progressismo” agnóstico e ateu, bem como pela necessidade de tudo resolver, mediante maiorias ocasionais em convescote de leigos, e assembleias eclesiais de base anarcossindical.

Para estes a Igreja deve se “aggiornar”, adquirir o discurso do novo tempo; ser a favor do aborto, do casamento gay, do amor livre, casamento dos padres, sacerdócio feminino e execração pública dos desvios de pedofilia; teses que conjugam modernidade, mas tracejam um perigoso caminho de desordem e anarquia, sem falar na própria figura divina do Cristo.

E nesse discurso Jesus já era, deixou de ser Deus, diante do ideal maior de ecumenismo que reúne toda fé, incluindo toda falta de fé, numa mistura fugaz de pouca fertilidade. E como tantas fés se nivelam e se anulam, é sinal que sobra pouca piedade e oração.

Em ausência de piedade e oração, fé e razão descortinam verdades inconciliáveis, porque a razão somente ignora as virtudes teologais de Fé, Esperança e Caridade. Daí a bula “Ratio et fides”, razão e fé, do Papa Bento XVI, reafirmando a alma imortal do cristão, perante o seu corpo perecível.

E assim com os filhos das trevas combatendo os da lucidez, a Igreja continua sua caminhada; Igreja que é humana nos seus tropeços de pastores e comunidade orante, e divina sob a inspiração de Cristo e seus apóstolos.

Se estamos vivenciando anos ruins, a Igreja já os viveu piores.

E não estou a falar das excomunhões, das simonias, da mercancia de indulgências plenárias, nem dos abusos de perseguição herética e inquisicional.

Eu quero relembrar os idos da Revolução Francesa, quando o terror ainda não assumira a ordem do dia, mas os padres e bispos, em expressiva maioria, despiam os seus paramentos em praça pública, sob pleno aplauso daquela ditosa cidadania, na sempiterna algaravia de evidente acefalia.

O Papa que sai, parece estar vencido por uma guerra interna de egos, que deseja a desconstrução da Igreja, enquanto instituição milenar voltada para a santificação do homem, com tantos pastores querendo se desvestir de sua estola e mitra.

A nova igreja, aquela que não ousa doutrinar nem discordar em seu próprio tempo, é festejada agora com o protesto galhofeiro de garotas despidas nas naves góticas de Nossa Senhora de Paris, só porque um Papa digno e sábio se despede, entendendo sua missão devidamente cumprida, deixando de intervir na história, o que é um exemplo de grandeza e humildade.

Ou um gesto miúdo de covardia e fracasso, como Dante Alighieri versificara de Celestino V…

O tempo, que sempre exige coragem nas tormentas, está a desafiar os espíritos lúcidos e obscuros, afinal todos somos frágeis e imperfeitos.

Se não existe a vacância permanente do poder, a renúncia de Bento XVI nos deixa sobremodo perplexos.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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