A tortura, essa ferida que não cicatriza

Marcos Cardoso

Uma enquete rápida: quem aí defende a tortura? A julga pelos 30% que apoiam Bolsonaro há de se acreditar que uma parcela considerável dos brasileiros defende a crueldade perpetrada no ato covarde onde toda carne se trai. O presidente e seus filhos são declaradamente defensores da tortura.

Agora mesmo, o zero dois Eduardo lembrou abjetamente à Miriam Leitão como ela foi torturada pela tão festejada Ditadura Militar. Numa chamada para a sua coluna semanal, a jornalista escreveu no Twitter: “Qual o erro da terceira via? É tratar Lula e Bolsonaro como iguais. Bolsonaro é inimigo confesso da democracia.” Eduardo rebateu: “Ainda com pena da cobra”.

Que cobra? Já narrado por ela mesma, o suplício de Miriam, iniciado no dia 4 de dezembro de 1972, quando estava grávida, incluía tapas, chutes, golpes que abriram a sua cabeça, o constrangimento de ficar nua na frente de 10 soldados e três agentes da repressão e horas intermináveis trancada na sala escura com uma jiboia.

Na semana passada, o próprio Jair voltou a homenagear o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, a quem dedicou o voto a favor do impeachment de Dilma Rousseff em 2016, quando ainda era deputado federal. Classificou-o de “velho amigo que lutou por democracia”.

A realização mais destacada do “velho amigo” foi ter torturado aquela que um dia viria a ser a primeira mulher presidente do Brasil, que havia sido presa quase dois anos antes de Miriam Leitão, no dia 16 de janeiro de 1970. Ambas foram torturadas no governo de Emílio Garrastazu Médici, considerado o mais violento do regime ditatorial que durou 21 anos.

A tortura é uma ferida aberta e quem se deleita com isso sempre encontra um jeitinho de cutucar para machucar mais. E infelizmente há patetas cínicos a remexer nos porões para tentar tirar vantagem da desgraça alheia, a se vangloriar daquilo que efetivamente não fizeram, ou por absoluta ignorância mesmo.

Em maio de 2008, durante depoimento da então ministra da Casa Civil na Comissão de Infraestrutura do Senado, o potiguar José Agripino Maia, dito “democrata”, afirmou que como Dilma Rousseff já havia admitido numa entrevista que mentiu, sob tortura, poderia mentir de novo.

A insensibilidade do senador — que reforçou a galhofada contando que também lutou contra a ditadura, quando, no começo dos anos 80, deixou o PDS para entrar no PFL e apoiar a candidatura de Tancredo Neves (PMDB) no Colégio Eleitoral — foi exposta e devidamente horizontalizada com dignidade pela ex-militante clandestina da VAR-Palmares, presa e torturada pela Operação Bandeirante mal havia saído da puberdade.

“Eu tinha 19 anos. Eu fiquei três anos na cadeia. E eu fui barbaramente torturada, senador. Qualquer pessoa que ousar dizer a verdade para interrogador compromete a vida dos seus iguais”, respondeu Dilma.

“Eu me orgulho muito de ter mentido, senador. Porque mentir na tortura não é fácil. Salvei companheiros da tortura e da morte. Uma ditadura policiada é a impossibilidade de se dizer a verdade em qualquer circunstância. Não é possível supor que se dialogue no choque elétrico, no pau-de-arara. Na tortura, quem tem coragem e dignidade fala mentira. Isso faz íntegra a minha biografia, que eu tenho imenso orgulho”.

E encerrou: “Qualquer comparação entre a ditadura militar e a democracia brasileira só pode partir de quem não dá valor à democracia. E eu acredito, senador, que nós estávamos em momentos diferentes da nossa vida em 70”.

Trechos de uma entrevista feita em 2003 e publicada pela Folha de S.Paulo em 2005 foram usados pelo Agripino para atacar Dilma Rousseff. Quando presa, ela mereceu, do procurador militar que a denunciou, os epítetos de “Joana D’Arc da subversão”, “papisa da subversão”, “criminosa política” e “figura feminina de expressão tristemente notável”. Só saiu da cadeia no final de 1973.

Seguem trechos da entrevista:

“Pergunta – Que lembranças a sra. guardou dos tempos de cadeia?

Dilma Rousseff – A prisão é uma coisa em que a gente se encontra com os limites da gente. É isso que às vezes é muito duro. Nos depoimentos, a gente mentia feito doido. Mentia muito, mas muito.

Pergunta – Como era essa história de mentir diante da tortura?

Dilma – A gente tinha que fazer uma moldura e só se lembrar da moldura, da história que se inventava, e não saía disso. Tinha que ter uma história. Na relação do torturador com o torturado a única coisa que não pode acontecer é você falar ‘não falo’. Se você falar ‘não falo’, dali a cinco minutos você pode ser obrigado a falar, porque eles sabem que você tem algo a dizer. Se você falar ‘não falo’, você diz pra eles o seguinte: ‘Eu sei o que você quer saber e não te direi’. Aí você entrega a arma pra ele te torturar e te perguntar. Sua história não pode ser ‘não falo’. Tem que ser uma história e dali para frente você não sabe mais nada, não pode saber.

Pergunta – Quais são as cenas que estão vindo na sua cabeça, agora?

Dilma – Eu lembro de chegar na Operação Bandeirante, presa, no início de 70. Era aquele negócio meio terreno baldio, não tinha nem muro, direito. Eu entrei no pátio da Operação Bandeirante e começaram a gritar ‘mata!’, ‘tira a roupa’, ‘terrorista’, ‘filha da puta’, ‘deve ter matado gente’. E lembro também perfeitamente que me botaram numa cela. Muito estranho. Uma porção de mulheres. Tinha uma menina grávida que perguntou meu nome. Eu dei meu nome verdadeiro. Ela disse: ‘Xi, você está ferrada’. Foi o meu primeiro contato com o esperar. A pior coisa que tem na tortura é esperar, esperar para apanhar. Eu senti ali que a barra era pesada. E foi. Também estou lembrando muito bem do chão do banheiro, do azulejo branco. Porque vai formando crosta de sangue, sujeira, você fica com um cheiro…

Pergunta – Dá pra relembrar?

Dilma – Mandaram eu tirar a roupa. Eu não tirei, porque a primeira reação é não tirar, pô. Eles me arrancaram a parte de cima e me botaram com o resto no pau-de-arara. Aí começou a prender a circulação. Um outro xingou não sei quem, aí me tiraram a roupa toda. Daí depois me botaram outra vez.

Pergunta – Com choques nas partes genitais, como acontecia?

Dilma – Não. Isso não fizeram. Mas fizeram choque, muito choque, mas muito choque. Eu lembro, nos primeiros dias, que eu tinha uma exaustão física, que eu queria desmaiar, não aguentava mais tanto choque. Eu comecei a ter hemorragia.

Pergunta – Onde eram esses choques?

Dilma – Em tudo quanto é lugar. Nos pés, nas mãos, na parte interna das coxas, nas orelhas. Na cabeça, é um horror. No bico do seio. Botavam uma coisa assim, no bico do seio, era uma coisa que prendia, segurava. Aí cansavam de fazer isso, porque tinha que ter um envoltório, pra enrolar, e largava. Aí você se urina, você se caga todo, você…”

* É jornalista e escritor. Foi diretor de Redação do Jornal da Cidade, secretário de Comunicação da Prefeitura de Aracaju, diretor de Comunicação do Tribunal de Contas de Sergipe e é servidor de carreira da UFS. É autor dos livros “Sempre aos Domingos – Antologia de textos jornalísticos” e do romance “O Anofelino Solerte”.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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