ÁGUA, UM PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE

O grande tema que deslizou, sem qualquer represamento, durante toda a semana foi a polêmica transposição das águas do Rio São Francisco. Em todo canto e recanto do país, especialmente na poderosa Brasília, o assunto agora navega livre, não mais contido nas margens dos estados nordestinos e de Minas Gerais. E, sem medo de afundar nas águas nebulosas da modéstia, com o auxílio do vento soprado pela OAB.

 

Não poderia ser diferente, pois o destino do Velho Chico não pode ficar aprisionado nos gabinetes palacianos ou na desesperada ação de quem dele diretamente necessita. É que a água é um patrimônio estratégico da humanidade, não podendo ser condenada à evaporação e desaparecimento por atitudes unilaterais, apressadas ou calendários políticos, qualquer que seja a nação detentora de sua propriedade. Ainda mais na Era da Consciência Ecológica e do Protocolo de Kioto, responsáveis pela compreensão de que o destino e preservação das coisas do planeta é uma responsabilidade coletiva, não apenas dos Estados e dos indivíduos.

 

Foi o que bem resumiu o professor Paulo Afonso Leme Machado, quando da realização do último Fórum Social Mundial, realizado na cidade de Porto Alegre. Disse ele, com a sua experiência de vice-presidente do Centro de Direito Comparado do Meio Ambiente e de membro do Conselho Internacional de Direito Ambiental, “que o direito da atual geração não exclui o direito das próximas gerações”. Escrevendo em outras palavras, que não se pode a pretexto de melhor aproveitamento dos recursos naturais destinados a servir a uma geração, impedir que outra possa deles conhecer, usufruir e garantir a própria sobrevivência.

 

Ainda mais quando esse bem precioso é a água potável, já previamente diagnosticado como o mais cobiçado, raro e essencial recurso natural destinado a garantir a existência da próxima geração. Não foi sem razão, portanto, que o Comitê das Nações Unidas para os Direitos Econômicos, Culturais e Sociais apontou o acesso à água como direito da humanidade, pois fundamental à saúde do homem. E não apenas ao homem, pois sem água não se pode falar em manutenção do ecossistema e da vida no planeta.

 

Como se vê, a água potável é um bem fundamental, estratégico e escasso, apesar do cantor Guilherme Arantes ter batizado a Terra como Planeta Água. É que, mesmo dispondo de uma enorme quantidade de água, quase noventa e sete por cento (97%) estão represadas nos mares e oceanos, além dois por cento (2%) congeladas nas regiões polares. Resumindo em águas claras: apenas um por cento (1%) está efetivamente disponível para o consumo humano, a irrigação e o uso industrial.

 

É compreensível, em função dessa importância, o desejo de preservação, uso e manutenção dos rios e água potável pelos estados e comunidade que deles acessam diretamente.  Da mesma forma, é perfeitamente compreensível a vontade e o sonho de uso daqueles que não tiveram o privilégio de nascer na beira de um rio, sempre atormentado pela possibilidade de provar o dissabor da sede.  O que se não pode compreender é impedir que os dois desejos se acasalem, assim como, harmoniosa e diariamente, se fundem o rio com o mar.

 

O Velho Chico certamente não se negaria a unir estes dois desejos, até porque é de sua natureza dar de beber à vida, como fez durante toda sua história. Exatamente por assim se comportar, não é mais conhecido como “o rio sem história” (nome dado em 1920, por Vicente Licínio Cardoso), sendo agora chamado de “o rio da unidade” ou, mais comumente, “o rio da integração nacional. Quem nunca negou água para os irmãos nordestinos da Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco não negaria para os irmãos da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, transformando-se, justificadamente, no “rio da concórdia nacional”.

 

O problema é o Velho Chico, confessada e visivelmente, já não pode assim fazer, pois, represado pelos homens, assoreado pela ganância e seco pela insensibilidade dos governantes, definha em seu leito de morte. E enquanto não revitalizada a sua própria vida, não poderá cumprir a sua sina de fazer nascer a vida alheia. Não por egoísmo ou desprezo pela humanidade, mas, sobretudo, pela impossibilidade física de assim o fazer.

 

O grave é que não se está discutindo a revitalização do Velho Chico, renovando a sua vocação de fazer brotar a vida e integrar os homens. O que se quer é, mais uma vez, sugar simplesmente o líquido que lhe conserva a vida. Deste jeito, o Velho Chico será apenas o “rio que passou”, deixando saudade nos corações nordestinos e mineiros, mas, principalmente, causando uma lamentável perda para a humanidade.

 

* Cezar Britto, é advogado e secretário-Geral da OAB
cezarbritto@infonet.com.br

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