Análise da PEC n° 33/2011 – Parte I

Na semana passada, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou a admissibilidade da proposta de emenda à constituição n° 33/2011. O tom do noticiário sobre esse singelo fato foi alarmista: “CCJ da Câmara aprova PEC que submete decisões do STF ao Congresso Nacional”, foi a síntese do que se divulgou, com análises que partiam de uma suposta retaliação do Congresso Nacional ao julgamento do “mensalão” (ação penal n° 410) pelo STF e chegavam a um suposto golpe, verdadeiro atentado à independência entre os poderes, ruptura com o regime democrático.

Ministros do Supremo Tribunal Federal se envolveram no debate público e de imediato reagiram, contribuindo para o terrorismo mediático sobre a PEC 33/2011. Marco Aurélio afirmou que a proposta traduzia uma evidente retaliação, que implica afastamento da cláusula pétrea da separação de poderes e sugeriu se tratar de manobra para “virar a mesa” em cima do julgamento do “mensalão”. Gilmar Mendes disse que a PEC 33/2011 evocava coisas tenebrosas como na Constituição Totalitária de 1937, que era uma afronta do Congresso Nacional ao STF, que os parlamentares “rasgaram” a Constituição, pois a proposta era inconstitucional “do começo ao fim, de Deus ao último Constituinte que assinou a Constituição”, e que se essa proposta viesse a ser aprovada, era melhor que o Supremo Tribunal Federal fosse fechado. Por fim, Joaquim Barbosa, na condição de Presidente do STF, fez publicar nota oficial, no sítio da Suprema Corte na internet, afirmando que já é tradição consolidada entre nós de 80 (oitenta) anos a possibilidade de o STF declarar, por maioria absoluta, a inconstitucionalidade de leis, e que se “essa medida” (referindo-se à PEC 33/2011) for aprovada “fragilizará a democracia brasileira”.

A matéria já foi submetida ao exame oficial do STF. O Deputado Federal Carlos Sampaio, líder do PSDB na Câmara dos Deputados, impetrou mandado de segurança (MS 32036) por meio do qual pede que o STF, declarando que a tramitação da PEC 33/2011 tem tendência a abolir a cláusula pétrea constitucional da separação de poderes e reconhecendo o seu direito de não se submeter a deliberações que violam o processo legislativo constitucional, suste a tramitação da proposta e determine o seu arquivamento.

Como em quase tudo que ocorre na atual sociedade do espetáculo, as informações e reflexões sobre o assunto estão marcadas pela precipitação e pela superficialidade. Mesmo no meio jurídico, poucos se debruçaram em uma leitura menos apaixonada e mais completa do teor da PEC n° 33/2011, que, em nosso entendimento, possui muita consistência jurídica, está bem fundamentada e longe está de traduzir qualquer grave atentado ao regime democrático ou de intentar subjugar o Poder Judiciário, ainda que contenha equívocos e até mesmo eventuais inconstitucionalidades.

Vamos, ao longo das próximas semanas, tentar fazer esse exame, começando por sustentar, nesta primeira parte: a) que a PEC 33/2011 possui uma fundamentação pública e transparentemente assumida de, a partir do diagnóstico que efetua sobre o recente e exagerado ativismo judicial do STF – tema que tem sido objeto de estudos acadêmicos no mundo todo e no Brasil, tema que está mesmo na pauta das grandes discussões teóricas sobre separação de poderes, controle de constitucionalidade, controle judicial de políticas públicas, judicialização da política e ativismo judicial – restringir esse ativismo judicial exagerado do STF, submetendo-o, essencialmente em temas de sua atuação normativa (negativa ou positiva), a maior rigor e controle; b) que a PEC 33/2011 nada tem a ver com submeter decisões judiciais do STF – no sentido de decisões proferidas no exercício típico da função jurisdicional de aplicação contenciosa do direito aos casos concretos (como, por exemplo, decisões judiciais no julgamento de ações penais originárias) – ao controle do Congresso Nacional.

Com efeito, a PEC n° 33/2011 pretende:

1 – alterar a redação do Art. 97 da Constituição Federal, para aumentar de maioria absoluta para quatro quintos o quorum necessário para que tribunais possam declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público;

2 – alterar a redação do Art. 103-A da Constituição, para: a) prever que a Súmula Vinculante do STF somente produzirá efeito vinculante em caso de aprovação pelo Congresso Nacional, por maioria absoluta, admitida a aprovação tácita em caso de não deliberação pelo Congresso no prazo de noventa dias; b) aumentar de dois terços para quatro quintos o quorum necessário para que o STF proponha (e não mais edite) Súmula Vinculante; c) prever expressamente que a Súmula Vinculante deverá guardar estrita identidade com as decisões precedentes e não poderá exceder às situações que deram ensejo à sua criação;

3- alterar a redação do § 2° do Art. 102 da Constituição, para: a) estabelecer que as decisões definitivas de mérito do STF nas ações diretas de inconstitucionalidade que declarem a inconstitucionalidade material (e não formal, apenas material) de emendas à constituição (não de leis, apenas de emendas à constituição) não terão imediata eficácia contra todos e nem produzirão imediato efeito vinculante, devendo ser encaminhadas ao Congresso Nacional que, manifestando-se contrariamente à declaração de inconstitucionalidade por três quintos, deverá submeter a controvérsia a consulta popular; a manifestação do Congresso Nacional sobre a decisão do STF deverá ocorrer em sessão conjunta, no prazo de noventa dias, admitida a eficácia contra todos e o efeito vinculante em caso de decurso desse prazo sem manifestação do Congresso; b) vedar a suspensão de eficácia de emenda à constituição por decisão cautelar do STF.

Na fundamentação da proposta consta o diagnóstico do recente ativismo judicial do STF, que não difere de tantos diagnósticos efetuados por analistas que, no meio acadêmico, têm criticado com veemência essa atuação da Suprema Corte, notadamente nas questões políticas (a propósito, a crítica ao ativismo judicial exagerado do STF e do TSE, sobretudo, tem sido objeto de comentários que vimos efetuando desde 2007 em nossas colunas na Infonet). Confiram-se trechos:

“O protagonismo alcançado pelo Poder Judiciário, especialmente dos órgãos de cúpula, é fato notório nos dias atuais. A manifestação desse protagonismo tem ocorrido sob duas vertentes que, embora semelhantes, possuem contornos distintos: a judicialização das relações sociais e o ativismo judicial.
Entendemos a judicialização das relações sociais como um fenômeno decorrente do modelo constitucional adotado no Brasil, visto que dispomos de uma Constituição analítica que interfere no cotidiano das pessoas.
Parece-nos, nesse contexto, compreensível que as controvérsias sejam levadas ao Judiciário para a devida solução das questões concretas.
Além da judicialização, temos a vertente do ativismo judicial. O ativismo denota um comportamento, um modo proativo de interpretar a Constituição por parte dos membros do Poder Judiciário. Adotando essa postura, os magistrados, para o deslinde da controvérsia, vão além do que o caso concreto exige, criando normas que não passaram pelo escrutínio do legislador.
(…)
É tarefa simples enumerar os casos de explícito ativismo judicial. Difícil é mencionar exemplos de autocontenção de nossa Corte Suprema.
Por óbvio, devemos reconhecer as deficiências do Poder Legislativo, que tem passado por várias crises de credibilidade. Contudo, esse aspecto não deve justificar tais medidas, como se houvesse um vácuo político a ser ocupado pelo Supremo Tribunal Federal. O fortalecimento do Poder Legislativo deve ser debatido no âmbito da reforma político-eleitoral, mas não apenas nesse espaço. Há uma série de medidas de preservação e valorização da competência legislativa do Congresso Nacional que devem ser apreciadas, independentemente da aprovação de novas regras eleitorais.
O fato é que, em prejuízo da democracia, a hipertrofia do Poder Judiciário vem deslocando boa parte do debate de questões relevantes do Legislativo para o Judiciário.
(…)
As decisões proferidas nesses casos carecerão de legitimidade democrática porque não passaram pelo exame do Congresso Nacional. Estamos, de fato, diante de um risco para legitimidade democrática em nosso país.
Há muito o STF deixou de ser um legislador negativo, e passou a ser um legislador positivo. E diga-se, sem legitimidade eleitoral. O certo é que o Supremo vem se tornando um superlegislativo.
(…)
Embora não seja objeto da presente PEC, podemos inserir no contexto do distanciamento do Poder Legislativo em relação à Constituição o fenômeno da “mutação constitucional”. Trata-se de um processo informal de mudança de sentido e alcance de dispositivos constitucionais, promovido unilateralmente pelo Judiciário, justificado apenas por exercícios de hermenêutica. Indaga-se: convém à sociedade ter o Poder Legislativo inerte diante de uma mudança silenciosa da Constituição a cargo apenas do Supremo?
(…)
Por fim, o que temos observado a todo momento são decisões ativistas, que representam grave violação ao regime democrático e aos princípios constitucionais da soberania popular e da separação de poderes, os quais constam expressamente da Constituição Federal.
Tal anomalia precisa ser corrigida por mecanismos que fomentem o diálogo institucional entre os Poderes. É, portanto, o que se propõe, sem buscar suprimir qualquer parcela, ínfima que seja, da competência dos Poderes da República.
Desse modo, estamos, em síntese, propondo uma revisão da sistemática de aprovação de súmulas vinculantes e do modelo de controle de constitucionalidade de Emendas à Constituição Federal. Em ambos os mecanismos o Poder Legislativo assumirá, como deve ser, um papel relevante.”

Expusemos nesta primeira parte que, em nosso entendimento, ao contrário da avalanche de análises e informações divulgadas na semana passada, a PEC n° 33/2011 está longe de traduzir qualquer grave atentado ao regime democrático ou de intentar subjugar o Poder Judiciário (ainda que contenha equívocos e até mesmo eventuais inconstitucionalidades) e que possui muita consistência jurídica e está bem fundamentada (ainda que da fundamentação apresentada se possa legítima de democraticamente discordar).

Nas próximas partes, faremos a análise mais detalhada e minuciosa do conteúdo da PEC n° 33/2011.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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