Barroso e o Ativismo Judicial

A indicação do advogado e jurista Luís Roberto Barroso para o cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal foi efusivamente comemorada pela comunidade jurídica, devido aos seus inúmeros atributos profissionais e acadêmicos que o credenciam ao exercício da importante missão constitucional.

Em artigos e entrevistas anteriores a essa indicação, o então advogado e professor Barroso já apontava a necessidade de o STF praticar a autocontenção, tendo em vista um período de ativismo judicial intenso que já teria cumprido a sua tarefa. Noutras palavras, era chegada a hora da retomada do equilíbrio. O ativismo judicial do STF, necessário para a preservação de direitos fundamentais, precisava ser moderado. Em suas próprias palavras, em artigo publicado na revista eletrônica Conjur na data de 22/12/2008:

Uma nota final: o ativismo judicial, até aqui, tem sido parte da solução, e não do problema. Mas ele é um antibiótico poderoso, cujo uso deve ser eventual e controlado. Em dose excessiva, há risco de se morrer da cura. A expansão do Judiciário não deve desviar a atenção da real disfunção que aflige a democracia brasileira: a crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade do Poder Legislativo. Precisamos de reforma política. E essa não pode ser feita por juízes(grifou-se).

No início de sua trajetória como Ministro do STF, Barroso proferiu voto que contrariou tese ultra-ativista adotada pela Suprema Corte por ocasião do julgamento do “mensalão” (Ação Penal nº 470), que fora a de que a perda do mandato parlamentar dos três réus que são deputados federais e que sofreram condenação criminal transitada em julgado é decorrência automática da condenação criminal. Refiro-me ao recentíssimo julgamento (ocorrido em 08 de agosto deste ano de 2013), no qual o STF, ao condenar o Senador Ivo Cassol (PP/RO) pelo crime de fraude a licitações, praticado quando exerceu o cargo de Prefeito do Município de Rolim de Moura (RO), decidiu que a formalização da perda do seu mandato parlamentar deveria se submeter a deliberação plenária do Senado Federal, dependendo a decisão pela perda do mandato do voto da maioria absoluta.

O problema é que a Constituição estabelece, com especificidade, que, no caso de parlamentar que sofrer condenação criminal transitada em julgado, a perda do mandato será decidida pela Casa Legislativa, por voto secreto e maioria absoluta.

É o que dispõem os comandos normativos do Art. 55, inciso VI e seu § 2°:

Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:

(…)
VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.
(…)
§ 2º – Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa
(grifou-se).

A outra corrente de interpretação, adotada pelo STF no julgamento da Ação Penal n° 470, ampara-se nos comandos normativos que estabelecem que outra hipótese de perda do mandato parlamentar é a perda ou suspensão dos direitos políticos e que a condenação criminal transitada em julgado é causa de suspensão dos direitos políticos, devendo a perda do mandato parlamentar ser formalizada, nesse caso, por mera declaração da Mesa Diretora:

Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:
(…)
III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;

Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:
(…)
IV – que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;

§ 3º – Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa (grifou-se).

O Ministro Luís Roberto Barroso bem soube esclarecer que não existe a aparente antinomia nesses casos:

A proposição que concilia ambas as normas é relativamente singela e pode ser assim enunciada: a perda ou suspensão dos direitos políticos se dará no caso de condenação criminal transitada em julgado, sendo que, em se tratando de Deputado e Senador, ela estará sujeita a decisão do Plenário da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta. Entendimento análogo já fora adotado pelo STF no RE 179.502, Rel. Min. Moreira Alves. Criou-se, portanto, uma regra específica em relação a Deputados e Senadores. E, efetivamente, há um elemento distintivo na situação desses agentes: o fato de serem titulares de mandato parlamentar, conferido por votação popular. Independentemente de se achar essa solução boa ou ruim, o fato é que a distinção não se assenta em fundamento irrazoável (trecho da decisão monocrática proferida no MS n° 32326/DF).

Penso que a melhor razão jurídica está com a segunda decisão do Supremo Tribunal Federal, ainda que não pareça ser essa a melhor escolha política (noutras palavras, como legislador estabeleceria que a hipótese de perda de mandato do parlamentar que sofrer condenação criminal transitada em julgado seria submetida a mera declaração da Mesa Diretora, mas, como intérprete da Constituição, não consigo submetê-la à minha escolha política, ante a vontade constitucional que se deduz por variados métodos).

O Ministro Barroso formou a maioria na segunda decisão tomada pelo STF (condenação criminal do Senador Ivo Cassol). Praticou, ao que parece, aquilo que pregava antes de lá chegar: a necessidade de a Suprema Corte retomar o equilíbrio e conter o seu ativismo exagerado.

Todavia, na semana passada, o Ministro Barroso concedeu medida liminar em mandado de segurança para suspender os efeitos da deliberação plenária da Câmara dos Deputados que não cassou o mandato do deputado Natan Donadon, até o julgamento definitivo, adotando nova tese segundo a qual a perda de mandato de parlamentar condenado criminalmente a pena de reclusão em regime inicial fechado por tempo superior ao que resta de mandato deve ser efetuado por mera declaração da Mesa Diretora.

Essa decisão monocrática surpreendeu a comunidade jurídica, ainda que tenha recebido o aplauso geral da sociedade. É que, ainda que tenha construído sofisticada argumentação para demonstrar que não estaria se contradizendo, o fato é que essa sofisticada argumentação revela mais um capítulo do ativismo judicial exacerbado da Suprema Corte.

Com efeito, a “exceção objetiva” peca nos seguintes aspectos: interpreta a Constituição segundo a lei (parte do raciocínio de que a lei de execuções penais exige que pelo menos 1/6 da pena do condenado à prisão em regime fechado deve ser prestado exclusivamente na prisão, impossível a sua prestação com trabalho externo, ainda que parcial); aponta que um dos requisitos para o exercício do mandato parlamentar é o comparecimento às sessões (Art. 56, II e Art. 55, III), sendo que o não comparecimento, em casa sessão legislativa (ano legislativo) à terça parte das sessões ordinárias em (salvo licença ou missão autorizada) é hipótese autônoma e específica de perda de mandato parlamentar!

Noutras palavras, o não comparecimento do Deputado Natan Donadon à terça parte das sessões de 2013 – o que fatalmente vai ocorrer, logo logo, por causa da sua impossibilidade física, tendo em vista estar preso, em regime inicial fechado – tornar-se-á, muito em breve, hipótese autônoma de perda do mandato, a ser formalizada mediante mera declaração da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados (Art. 55, III c/c Art. 55, § 3º da Constituição). Mas é extremamente forçado considerar que, por conta disso, em tese, a perda de mandato de parlamentar condenado criminalmente a pena de reclusão em regime inicial fechado por tempo superior ao que resta de mandato é uma “exceção objetiva” à regra do Art. 55, inciso VI e §2º da CF (segundo a qual a perda do mandato depende de deliberação plenária da Casa Legislativa, por maioria absoluta).

Essa tese, penso, é contraditória com o discurso que o próprio Ministro Barroso adotou na fundamentação de sua decisão, na qual ressaltou o seu entendimento segundo o qual existe uma obrigação moral, mas não jurídica, de a Casa Legislativa cassar o mandato do parlamentar condenado em definitivo pela prática de crimes contra a Administração Pública, e que a população deveria cobrar politicamente o cumprimento dessa obrigação moral da Casa Legislativa:

Nada obstante isso, e para que não haja qualquer dúvida, penso que o Congresso Nacional, por suas duas Casas, deveria, como regra geral, decidir pela perda do mandato de parlamentares condenados definitivamente por crimes graves. Inclusive e especialmente quando se tratar de crimes contra a Administração Pública. Trata-se de um dever moral e a sociedade deveria cobrar seu cumprimento. A Constituição, no entanto, não transformou esse dever moral em obrigação jurídica. Ao contrário, abriu espaço para um juízo político do Congresso. Imaginar o Poder Judiciário como um tutor geral da República, além de comprometer a legitimidade democrática do poder político, significaria decretar a menoridade das demais instituições. (grifou-se)

E é com esse trecho final acima transcrito da decisão do Ministro Barroso que retomo o ponto de vista que tenho manifestado em diversas colunas publicadas aqui, neste espaço da Infonet, ao longo dos últimos seis anos, quanto à preocupação com os rumos do ativismo judicial excessivo  do Supremo Tribunal Federal (também do Tribunal Superior Eleitoral), que, a meu juízo, não obstante possua uma composição da mais alta qualificação jurídica, não pode e nem deve concentrar em suas mãos uma gama tão variada de poderes, em prejuízo das instâncias judiciais de base (que estão bem mais próximos do drama humano que todo processo judicial apresenta) e em prejuízo da cena democrática.

Os grandes temas nacionais, que deveriam necessariamente passar por amplo debate democrático em toda a sociedade e nos locais mais adequados para o exercício da representação política formal dessa mesma sociedade (Poder Legislativo e Poder Executivo), passam a ser objeto de monopolização pelo Poder Judiciário (leia-se STF) (seja por meio de edição de súmulas vinculantes, seja por meio de decisões processualmente heterodoxas proferidas em casos individuais com eficácia transcendente, seja por meio da intensificação das audiências públicas, o fato é que a Corte Suprema tornou-se um agente de intenso protagonismo político em nossa sociedade).

E ainda que em determinado contexto de aplicação (notadamente a afirmação de direitos fundamentais, em especial de minorias) esse ativismo judicial do STF tenha sido necessário, o fato é que o Poder Judiciário não pode se transformar no guardião paternalista da sociedade. Cabe ao povo-eleitor-soberano, em última análise, avaliar o comportamento dos seus representantes (partidos e políticos) no exercício das tarefas políticas, avaliar a fidelidade de tais representantes aos propósitos difundidos em campanha eleitoral e em seus programas partidários, bem como o eu comportamento ético.

Transferir essa tarefa ao Poder Judiciário é transferir tarefa originariamente pertencente ao povo, com prejuízo do amadurecimento da democracia. Com esse tipo de tutela judicial, é mais difícil o processo de conscientização popular que habilite o cidadão-eleitor a democraticamente exigir fidelidade dos partidos políticos às suas orientações programáticas e às suas plataformas eleitorais.

O grande risco é o de tornar a Suprema Corte depositária de todas as esperanças e anseios da sociedade, o tutor moral e ético da República. Já que os demais poderes, em especial o Legislativo, vêm falhando seriamente no atendimento das demandas coletivas (como falhou terrivelmente na não cassação do deputado Natan Donadon), que o Poder Judiciário e em especial o STF assuma esse papel, em nome do implemento voluntarista das determinações constitucionais.

Assim, fica mais difícil o aprendizado democrático rumo ao efetivo respeito à prevalência da vontade soberana do povo, titular de todo o poder.

E fica perigosamente aberta a porta para que o Poder Judiciário, em especial o STF – a quem falta legitimidade democrática no sentido da representação de vontade (via eleição pelo povo) para implementação de prioridades governamentais e de políticas públicas – como arauto do bem e da verdade, imponha antidemocraticamente suas próprias convicções ao país, em nome de uma suposta defesa da Constituição.

Aniversário de seis anos

Esta coluna completa seis anos de existência. Em 12/09/2007, escrevi o primeiro texto, denominado “O apagão da transparência no Senado Federal”. Tratava da decisão do Senado Federal de realizar sessão secreta para julgamento do Senador Renan Calheiros, acusado de prática de conduta incompatível com o decoro parlamentar. De lá pra cá, semanalmente, a coluna tem se dedicado à análise de temas jurídicos de repercussão no cotidiano da sociedade.

Agradeço inicialmente à Infonet, pelo convite para um desafio que se renova a todo instante. Em seguida, agradeço aos leitores e amigos, muitos dos quais, tanto através de e-mail como por via de comentário no próprio site e em redes sociais, têm emitido opiniões e participado construtivamente das discussões propostas pela coluna.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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