Brincando de polícia e bandido

Marcos Cardoso

As ditaduras no Brasil contaram com o apoio, senão com o protagonismo, das forças militares, lideradas sempre pelo Exército. A República brasileira começou em 1891 com um golpe militar encabeçado pelo Marechal Deodoro da Fonseca e, com a eleição do próprio como primeiro presidente nacional, naquele mesmo ano, implantou-se uma ditadura, pois o Congresso foi dissolvido e seus parlamentares presos.

Finda a República Velha, quando o governo sempre elegeu seus candidatos oligarcas, a insatisfação desemboca na Revolução de 1930, que é um golpe de Estado contra o governo Washington Luís e a posse do presidente eleito Júlio Prestes. Um dos líderes é o civil Getúlio Vargas, apoiado por militares. Em 1937, acontece o golpe dentro do golpe, quando Vargas implanta o período ditatorial (Estado Novo) que iria até o fim da 2ª Guerra Mundial (1945).

De 1964 a 1985 os generais implantaram um regime das trevas de forte influência sobre a vida nacional até os dias de hoje, 27 anos depois de finda a ditadura. De quantos resquícios daqueles anos ainda precisamos nos livrar para nos tornarmos um país mais democrático e moderno? O Brasil insiste em esconder os crimes de tortura e desaparecimentos políticos perpetrados naquele período. O regime militar deixou um persistente legado na arcaica estrutura jurídica, nas práticas políticas, na gestão corrupta e em outras esferas da vida social brasileira.

Mas a herança mais indesejada certamente é a violência, no que concordam Edson Teles e Vladimir Safatle, organizadores do livro “O que resta da ditadura” (Boitempo, 2010), violência medida não pela contagem de mortos deixados para trás, mas por meio das marcas encravadas no presente. “Neste sentido, podemos dizer com toda a segurança: a ditadura brasileira foi a mais violenta que o ciclo negro latino-americano conheceu. Quando estudos demonstram que, ao contrário do que aconteceu em outros países da América Latina, as práticas de tortura em prisões brasileiras aumentaram em relação aos casos de tortura na ditadura militar; quando vemos o Brasil como o único país sul-americano onde torturadores nunca foram julgados, onde não houve justiça de transição, onde o Exército não fez um mea culpa de seus pendores golpistas; quando ouvimos sistematicamente oficiais na ativa e na reserva fazerem elogios inacreditáveis à ditadura militar; quando lembramos que 25 anos depois do fim da ditadura convivemos com o ocultamento de cadáveres daqueles que morreram nas mãos das Forças Armadas; então começamos a ver, de maneira um pouco mais clara, o que significa exatamente ‘violência’”, afirmam os professores paulistas.

Apesar de não renegar o passado, de algumas avaliações distorcidas e de certos arroubos da caserna, o Exército Brasileiro se pacificou e tem se adaptado à convivência democrática. E a Polícia Militar, evoluiu? Melhor: o sistema nacional de segurança pública se adaptou aos novos tempos? A resposta é não.

Em que pese a grave situação da segurança pública no Brasil, o País mantém um modelo de polícia ineficiente, violento e corrupto, bem como uma política criminal essencialmente repressiva, que tem produzido elevadas taxas de encarceramento e mais violência. A avaliação é de Marcos Rolim, jornalista, consultor em segurança pública, professor de direitos humanos e assessor do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, autor do artigo “Caminhos para a inovação em segurança pública no Brasil”.

O Brasil não adota as inovações em experiências de reforma das polícias de outros países, apesar de desde os anos 1980 conviver com taxas elevadíssimas de homicídios e com um transbordamento de práticas violentas propostas por grupos vinculados ao tráfico de armas e drogas, em ações conduzidas por parte das próprias polícias — entre elas a persistência da tortura e dos grupos de extermínio — e em manifestações coletivas de grupos sociais nos principais centros urbanos, que vão das disputas entre torcidas de futebol e “quebra-quebras” até os cenários de linchamentos nas periferias.

“Em poucas áreas, como nas políticas de segurança pública, os espaços para a inovação são tão estreitos e o apego à tradição tão consolidado. Lidamos, então, especificamente nesta área, com uma resistência incomum à inovação, que constitui, em si mesma, parte do problema a ser enfrentado”, afirma Rolim, sustentando a necessidade de se construir no Brasil uma nova relação entre as políticas de segurança e as ciências sociais e pensando, neste particular, as responsabilidades dos governos, da mídia e da instituição universitária brasileira.

Na instituição policial, há um conservadorismo pronunciado que se prende à circunstância de que as polícias em todo o mundo raramente são, de fato, controladas. Elas possuem, pelo menos em muitas das experiências nacionais, uma autonomia perturbadora dentro do Estado Democrático de Direito e atuam, em regra, como se não devessem prestar contas de seus atos cotidianos a uma autoridade externa. Esse mesmo espaço de autonomia abrigará boa parte das distorções operantes no trabalho policial, além das práticas violentas e criminosas que comprometem a própria imagem das polícias.

Para Marcos Rolim, as tarefas de repressão e manutenção da ordem são e continuarão sendo muito importantes para qualquer estrutura moderna de policiamento, mas podem e devem ser desenvolvidas por uma racionalidade programática orientada pelos objetivos da paz, da proteção aos direitos humanos e da prevenção ao crime e à violência.

A questão salarial levantada pelos policiais militares é pertinente e tem que ser levada em conta, mas a greve – que não é greve, é motim –, pode ter sido um tiro no próprio pé. O professor e cientista político Adriano de Freixo, da Universidade Federal Fluminense, acredita que a onda de homicídios que eclodiu na Bahia após a paralisação dos agentes criou uma imagem negativa do movimento perante a opinião pública, ao contrário do que ocorreu ano passado, quando a mobilização dos Bombeiros no Rio ganhou forte apoio popular. Hoje, há uma sensação geral de medo.

Para o jurista Wálter Maierovitch, os policiais militares violaram a lei ao entrar em greve porque não são educados para a legalidade democrática e caso de fato haja uma articulação para espalhar a greve por outros Estados, os policiais usarão método semelhante ao posto em prática pela facção criminosa paulista Primeiro Comando da Capital (PCC), que em 2006 promoveu uma onda de ataques contra forças de segurança e rebeliões em presídios em vários Estados brasileiros.

Maierovitch também considera ilegal o papel desempenhado nos movimentos grevistas pelas associações de policiais militares. Ainda que policiais sejam proibidos de se sindicalizar, esses grupos têm atuado como sindicatos. "Ninguém toma providências porque evidentemente todos sabem que o salário dos policiais é ridículo, e no mundo inteiro a segurança pública é uma das maiores preocupações dos eleitores", diz.

E falta vontade política para solucionar os problemas de segurança pública no Brasil. Maierovitch cita como exemplo dessa postura a longa tramitação da emenda constitucional que estabeleceria um piso salarial nacional para bombeiros e PMs, conhecida como PEC 300. Apresentada ao Congresso em 2008, a proposta passou por uma primeira votação na Câmara, mas não tem prazo para ser votada em segundo turno na mesma Casa nem para ser enviada ao Senado.
A aprovação da medida poria fim a uma das principais queixas da classe, a disparidade entre os salários recebidos por policiais militares de diferentes Estados. Enquanto em Brasília a categoria tem como piso R$ 4 mil, o valor mais alto do País, na Bahia, por exemplo, o piso é de pouco mais de R$ 2 mil. Para superar o impasse, o Congresso teria que dar prioridade à discussão da PEC 300, marcando uma data para a próxima votação da proposta.

Mas resolver a questão salarial não resolveria tudo. Para José Vicente da Silva, coronel da reserva da PM de São Paulo e consultor da área de segurança, a alta nos índices de criminalidade na Bahia nos últimos anos mostra que há necessidade de uma "intervenção em profundidade" nas forças baianas. Ele não vê no movimento grevista, porém, uma grande capacidade de articulação. Para ele, a insatisfação de policiais é maior em alguns Estados, como Bahia, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, locais aonde três fatores tornam a situação especialmente crítica: os baixos salários comparados à média nacional, o tratamento diferenciado dado a oficiais de alto e baixo escalões e a aplicação de disciplina considerada excessiva pelos soldados. Por esse prisma, as insatisfações dos militares sergipanos, expressas na greve branca durante o Pré-Caju, seriam de menor poder ofensivo.

"Houve uma ruptura entre oficiais e soldados, daí que surgem as lideranças espúrias desses movimentos", diz Vicente da Silva, afirmando que o governo federal também é responsável pela crise, na medida em que no ano passado cortou grande parte dos investimentos em segurança pública para cumprir metas fiscais. E critica a presidenta Dilma Rousseff por ter anistiado, em 2011, bombeiros e policiais punidos por participarem de greves por melhores salários no Rio. "A anistia ficou como uma espécie de salvo-conduto para próximos movimentos. Criaram um ovo de serpente." Vicente da Silva defende que o governo endureça a negociação e mostre que, a partir de certo momento, sanções terão de ser aplicadas. "Se tiver de demitir 2 mil policiais, que sejam demitidos."

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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