CNJ e vedação de patrocínio a eventos de juízes

A garantia de um Poder Judiciário independente é essencial à mais perfeita configuração de um Estado Democrático de Direito. Há quem aponte, com consistência, que mais importante do que o catálogo de direitos fundamentais previsto no ordenamento jurídico é a garantia da acessibilidade e efetividade da prestação jurisdicional assecuratória desses direitos fundamentais.

É exatamente por isso que, no Brasil, o Poder Judiciário é estruturado com garantias objetivas de independência (autonomia administrativa e financeira e autonomia para elaboração de sua proposta orçamentária), bem como prerrogativas dos magistrados, enquanto tais (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios), que lhes asseguram plenas condições objetivas de insuscetibilidades a qualquer tipo de pressão ou ingerência para que julguem de uma ou outra forma os casos sob sua apreciação.

Com efeito, a sociedade é a detentora dessas prerrogativas: um Poder Judiciário independente é a sua garantia contra toda espécie de abuso de poder e contra violação de direitos. A cidadania confia que as decisões judiciais – porque decorrem de um Poder Judiciário independente, com juízes imunes a pressões externas (pois detentores daquelas prerrogativas) – resultam de livre convicção interpretativa do magistrado ante as circunstâncias do caso e o direito posto.

O outro lado dessa necessária garantia de independência dos magistrados é a proibição de que pratiquem certos atos ou condutas que, de algum modo, possam transparecer à sociedade uma espécie de vinculação com interesses outros que não o interesse público e que, de algum modo, comprometam a isenção dos seus julgamentos.

Nessa direção, os magistrados estão proibidos de: exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério; receber, a qualquer título, custas ou participação em processo; dedicar-se à atividade político-partidária; receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas (Art. 95, parágrafo único, inciso IV), ressalvadas as exceções previstas em lei; exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo ou aposentadoria ou exoneração.

A oportunidade desse comentário advém da notícia de que o Conselho Nacional de Justiça aprovou resolução que “Regulamenta a participação de magistrados em congressos, seminários, simpósios, encontros jurídicos e culturais e eventos similares.”.

Nessa resolução, o CNJ estabeleceu, em seu Art. 2°, que “Os congressos, seminários, simpósios, encontros jurídicos e culturais e eventos similares, quando promovidos por Tribunais, Conselhos de Justiça e Escolas Oficiais da Magistratura, com participação de magistrados, podem contar com subvenção de entidades privadas com fins lucrativos, desde que explicitado o montante do subsídio e que seja parcial, até o limite de 30% dos gastos totais.” (grifou-se).

Noutras palavras, o CNJ – a quem incumbe o controle da atuação administrativa e financeira dos órgãos do Poder Judiciário e o cumprimento dos deveres funcionais dos magistrados – acaba de, a pretexto de regulamentar a participação de magistrados em eventos jurídicos, culturais e similares, autorizar que os juízes possam receber, por via indireta de patrocínio privado a eventos organizados pelas associações de magistrados, auxílios ou contribuições de entidades privadas, ainda que limitada a 30% dos gastos totais desses eventos.

Trata-se de flagrante descumprimento da norma constitucional do inciso IV do Art. 95 da Constituição Federal, acima citada, segundo a qual os magistrados estão proibidos de receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas.

A possibilidade de que 30% das despesas totais de eventos jurídicos ou culturais de magistrados sejam financiados por empresas privadas, inclusive com fins lucrativos, abre margem para a continuidade, agora sob a roupagem de licitude amparada em resolução do CNJ, de práticas repudiadas pela sociedade civil, traduzidas em abuso de poder econômico comprometedor da isenção e da imparcialidade dos julgadores.

Com efeito, não é incomum a realização de congressos jurídicos em que entidades privadas, no mais das vezes bem frequentadoras de processos judiciais e portanto interessadas em suas decisões, figuram como financiadoras, desde a inscrição de juízes até despesas com hospedagem e alimentação.

Relembre-se o caso, aqui comentado, de realização do 27° Encontro de Juízes Federais, que ocorreu entre 10 e 13 de novembro de 2010, em um hotel cinco estrelas, na Ilha de Comandatuba/BA. Segundo dados levantados pela imprensa nacional, a diária nesse resort custava, então, entre R$ 900,00 e R$ 4.000,00, mas os magistrados que se inscreveram naquele 27° Encontro tiveram a hospedagem garantida mediante pagamento da quantia de R$ 750,00 (ou seja, pelo valor inferior ao valor normal de uma diária puderam desfrutar de quatro diárias). A inscrição ainda teria dado direito à participação em show de Elba Ramalho, oficinas para aprendizado do jogo de golfe, entre outros momentos de lazer, cultura e entretenimento, além das palestras e debates jurídicos propriamente ditos. Tudo isso somente teria sido possível graças ao patrocínio da Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, Souza Cruz, Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e Lubrificantes, Eletrobrás e Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial. Valores revelados publicamente desses patrocínios: R$ 280.000,00 da CEF, R$ 100.000,00 do BB e R$ 60.000,00 do Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e Lubrificantes.

Situações como essa podem gerar na comunidade a presunção (legítima, diante das circunstâncias, ainda que não verdadeira) de que determinado julgamento proferido por um magistrado que tenha se beneficiado desses patrocínios – em demandas nas quais sejam partes processuais alguma das entidades patrocinadoras ou suas filiadas – consista num favorecimento resultante de uma “troca de favores”.

Como bem apontou WÁLTER FANGANIELLO MAIEROVICH, “Não há dúvida de que, no caso relatado acima, o patrocínio é concedido a uma associação privada, que congrega magistrados ativos e inativos. Assim, os magistrados acabam, por via da associação, se beneficiando do patrocínio. Pergunta-se: o leitor, caso promovesse uma ação indenizatória contra um dos patrocinadores, desconfiaria da isenção do magistrado julgador e partícipe do encontro?” (In Carta Capital, 17/11/2010, p. 25).

O Ministro Francisco Falcão, Conselheiro do CNJ e atual Corregedor Nacional de Justiça, declarou que a resolução aprovada foi a “possível”: “É um passo inicial. A resolução atende em parte aos anseios da sociedade”. Segundo o noticiário, sua intenção – também a do Ministro Joaquim Barbosa, presidente do CNJ – era a de vedar em absoluto qualquer patrocínio privado a eventos de juízes, intenção que teria cedido à permissão de patrocínio privado limitado em 30% das despesas totais do evento tendo em vista resistência dos demais conselheiros à proibição total.

Todavia, a ser assim, melhor era não ter aprovado resolução alguma. E aplicar diretamente aos casos o que a Constituição Federal estabelece peremptoriamente em ser Art. 95, parágrafo único, inciso IV: nem 30%, nem 15%, nem 5%. É a Constituição que muito claramente e em defesa da própria isenção e independência da magistratura – o que se faz em evidente proveito da sociedade – estabelece que nenhum percentual das despesas de eventos de juízes sejam patrocinados por empresas privadas ou mesmo públicas ou pessoas físicas.

A simples possibilidade de que algum cidadão presuma que o resultado de um julgamento decorre de uma devolução de favor, e não de uma independente e isenta apreciação do caso concreto à luz do direito posto, gera descrédito na prestação jurisdicional e por isso mesmo deve ser evitada. Não foi por outra razão que a emenda constitucional n° 45/2004 inseriu na Constituição Federal a proibição de que magistrados recebam, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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