Eu voto no direito à vida

Como cidadão-eleitor, sempre que o tempo me permite, procuro acompanhar o horário eleitoral gratuito destinado ao referendo sobre a comercialização de armas no Brasil. Não que eu esteja em dúvida sobre o meu voto, mesmo porque já fiz publicar vários artigos defendendo a então nascente Campanha pelo Desarmamento, mas, sobretudo, porque a vida é um assunto exageradamente sério. Tão sério que várias pessoas que respeito e admiro, incluindo neste rol aquelas que nunca terão armas de fogo, estão convencidas de que as armas são fundamentais para a “proteção dos cidadãos do bem” e à “paz”.

 

Antes do referendum já estava convencido de que as armas de fogo não cumpriam esta “missão de proteção”, até porque responsáveis pelo aumento da própria violência, vitimando em dois anos mais brasileiros do que os soldados estadunidenses na guerra do Vietnã. Também estava convencido da veracidade dos seguintes dados: a) os que usam armas de fogo têm mais chance de serem assassinados; b) um terço das despesas e emergências hospitalares são motivadas pelo uso destes instrumentos letais; c) são responsáveis, somente na cidade do Rio, por sessenta e cinco das mortes de jovens do sexo masculino, superando os acidentes de carro, as doenças e causas naturais; d) as armas de fogos trazem violência para a família, pois aumentam o risco de homicídio inter-familiar, os acidentes e os suicídios, sendo que quase metade dos homicídios é cometida por pessoas sem histórico criminal; e) são as legalizadas quem abastecem, quando roubadas ou perdidas, um terço do potencial bélico dos criminosos brasileiros.

 

Entretanto, não é exatamente o item “dados estatísticos” o que mais me impressiona na discussão, mesmo porque utilizado pelos dois lados em debate, não raro com coerentes interpretações díspares dos defensores de cada corrente. O que mais me impressiona na discussão é efetivamente a questão central do debate, mais especificamente a defesa do conceito de que “a paz somente pode ser obtida quando se prepara para a guerra”. A defesa da idéia de que a vida necessita da arma de fogo para poder sobreviver, mesmo sendo uma máquina construída exclusivamente para matar. A consolidação da concepção que afirma não existir contradição entre a guerra e a paz.    

 

Mas não foi este conceito quem alimentou todas as guerras espalhadas pelo mundo, desde as invasões egípcias, passando pelas grandes guerras mundiais e fazendo quente a chamada Guerra Fria? Não foi esta a idéia agasalhada pelos ditadores africanos quando compraram armamentos para matar o seu povo, a do General Bush quando invadiu o Iraque, ou a de Hitler, Mussolini, Napoleão, Átila, Stalin e outros imperialistas quando desenvolverem seus intuitos bélicos? Não é a história quem demonstra que as bombas atômicas, os canhões, as metralhadoras, os cruzadores e os caças não fizeram a paz, apenas servindo para armar aos espíritos bélicos dos governantes, dos terroristas e dos mercenários? Não são estas mesmas armas “legais” que estão nas mãos dos chamados “adversários” e “cidadãos do mal”, inclusive as destrutivas armas nucleares? Não é exatamente o grande número de armas quem faz o mundo inseguro, violento e sem qualquer perspectiva de paz?  

 

O referendo é, portanto, mais do que uma análise de estatística ou uma questão político-partidária. O referendo é, acima de tudo, uma compreensão do mundo, da paz e da própria vida. É exatamente a possibilidade de mudar uma concepção que claramente falhou. È enterrar definitivamente a idéia de que a arma de fogo é sinônimo de paz, proteção e esperança. É deixar claro que uma arma de fogo não pode ser encarada como um souvenir da morte ou uma medalhinha da vida. É contribuir para não dar lucro à riquíssima indústria que se alimenta da morte e da destruição da humanidade.

 

Acreditar que a paz somente pode ser conquistada com a força da paz é a novidade não ainda experimentada pela humanidade. Não apoiar aqueles que conservam o espírito bélico, ainda que tido como “cidadão do bem”, faz parte do rol do inalienável direito de sobreviver. Apostar no direito à vida contra o direito de matar está ao alcance do meu voto. Afinal, o referendo torna atual a reflexão de Albert Einstein, quando ensinou que “o mundo não está ameaçado pelas más pessoas, mas sim por aqueles que permitem a maldade”.  

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