Gallípoli; Cem anos de um grande desastre.

Como Anzac Day  é assim conhecido o dia 25 de abril na história do mundo,

Trata-se de um feito memorial, lembrança de uma página estúpida da história humana.

Um feito notável de bravura e coragem, é verdade. Mas um episódio que nunca deverá ser esquecido, para não ser repetido, sobretudo pelo excesso de erros, com milhares de vidas ceifadas inutilmente, numa batalha distante de uma guerra inútil e insensata, conflito que deveria ser o último para determinar o término de todas as guerras.

Porque era assim, rápida e precisa, que os homens daquele tempo imaginavam aquela que ficou conhecida como 1a Guerra Mundial, confronto entre Inglaterra, França e Rússia, em aliança dita “Entente Cordial”, contra as potências europeias centrais; coligação da Alemanha imperial com a Monarquia Dual da Áustria-Hungria, a quem se juntou posteriormente o Império Otomano.

O sultanato Otomano possuía uma péssima reputação perante o contexto liberal vigente de “belle époque”, afinal se impunha em excesso atrabiliário sobre seus súditos e etnias, ousando cometer verdadeiros genocídios contra populações inteiras, como fora o caso dos Armênios, dizimados aos milhares, ou milhões por incontáveis, mártires canonizados ontem pelo Papa Francisco, em convite à tolerância e solidariedade, e em convocação à boa amizade entre os povos.

Hoje, passados cem anos, a História do Mundo ainda contempla muita intolerância e belicosidade. É como se a humanidade teimasse perseguir sua marcha de insensatez, só para usar o mote e o título de Barbara Thuchman em sua festejada apreciação dos conflitos bélicos, em tantos descaminhos e erros.

E é de um grande erro que pouco se fala do Dia Anzac.

Fala-se de brio, de coragem, de feitos heroicos, magníficos. Não se fala da cascata de erros que jamais deveria ser esquecida para não ser repetida.

Porque os erros se repetem, infelizmente.

E se repetem porque o homem é o mesmo em seus sonhos e dúvidas, traumas e medos; tudo renovado ao sabor das angústias espraiadas ao sol, atemorizadas sob a lua, e enlouquecidas por deuses interiores em ideias assumidas por livre arbítrio e pensar inconsequente.

Tudo aquilo que levou tantas nações em aliança a se deixarem afunilar no plano inclinado que as levaria à guerra, que seria de maior sangueira e sofrimento, em funestas consequências.

Guerra única que fizera o homem virar formiga como nunca; enterrando-se em trincheiras, sob metralha e baioneta calada, e sufocado por toxidade de gás mostarda.

Atoleiro que alongou a espera e apodreceu por gangrena, feridas que dizimaram legiões em urro de fera, a gritar ensandecidas, sentindo-se em seus gemidos “felizes e heróis, enquanto mártires numa guerra justa”, só para reverberar o epitáfio de Charles de Péguy, o poeta que os contemplava assim, na mesma dor suportada, sem lhes sentir futilidade, nem maldade, no seu texto inconsútil, de um sofrimento inútil, numa guerra fútil, a despertar tanta heroicidade em pouca finalidade.

Futilidade porque aquela Guerra como toda e qualquer refrega nunca fora justa, nem seria única, nem derradeira em pior sofrimento e miséria, só para confirmar que um bom soldado, no dizer de Florence Nightingale precisa possuir “uma certa dose de estupidez”.

E o dia Anzac trazia consigo este sentimento estúpido que deveria ser tão inútil, quão necessário para jamais ser repetido.

Não era a palavra Anzac uma sigla apenas de um corpo armado, conjunto de australianos e neozelandeses, que fora enviado para conquistar o Império Otomano em abril de 1915, devassando o estreito dos Dardanelos em demanda do Mar de Mármara e das praias do Mar Negro?

Que interesse instigaria tantos homens pacíficos e de bom convívio, amantes de coalas e cangurus, para vaguear do Pacífico ao Oceano Índico, bordejar todo o lado oriental da África, seguir pelo Mar Vermelho, ultrapassar o Canal de Suez, ingressar no Mar Mediterrâneo, o Tirreno e o Jônio, em busca do Mar Egeu, para  morrerem no Helesponto, o grande portal de Alexandre, limite entre a Europa e a Ásia, tudo aquilo que fora um antigo mundo, um mundo que não era novíssimo como o continente seu?

Por acaso os infectou uma roedura de algum diabo-da-tasmânia conferindo-lhes tal insânia?

Porque só uma motivação estúpida e um desrespeito às pessoas, enquanto carne-de-canhão, pensaria em enviar milhares de soldados australianos e neozelandeses às praias de Gallípoli, tão inóspitas quão distantes da Oceania, para ali morrerem sobre a metralha turca.

Alguém lhes teria dito que seria um passeio cultural? Vadear os passos de Xerxes I, o persa que tentara inutilmente amordaçar os Gregos de Temístocles?

Iriam por acaso ouvir o riso do persa na brisa radiante de leste a oeste, ou o seu pranto dorido de oeste a leste, naquele mesmo cenário, onde a Europa acaba e a Ásia começa, e só Alexandre ali vencera, conquistando a Porta de Ouro, com sua armada e lauta garra?

Ou estariam os Australianos e Neozelandeses nutridos num espírito alexandrino equivocado, só porque a pérfida Álbion lhes houvera dourado a pílula de uma cidadania, em mal disfarçada suserania?

O fato é que milhares de soldados de variada etnia e nacionalidade derramaram o seu  sangue naquele conflito doloroso, sempre imaginado justo, preciso e necessário, até para firmar a estirpe e a verticalidade de homens que nunca se vergam perante suas convicções assumidas.

Que ingleses, franceses e austríacos, russos ou alemães se matassem uns aos outros podemos até compreendê-los. França e Inglaterra, velhas inimigas de centenária divergência, haviam combinado novos interesses financeiros para dividir o mundo em seu proveito, em política colonialista expansiva combinada.

África e Ásia, Egito, Oriente Médio e até a Oceania fora rateado em bom gosto, inclusive com o Canal de Suez pacificado, e a Inglaterra conservando a Austrália, a Nova Zelândia, a Índia, tudo aquilo que sua magnífica esquadra guarnecia, em vasto território onde o sol jamais se punha.

E tudo estaria bem negociado não fora o desenvolvimento alemão tardio iniciado por Bismarck, na busca do espaço germânico vital, e continuado pelo Kaiser Guilherme II, política que desencadeou uma inimizade feroz de interesses em conflito, ampliado por desavenças entre pequenas nações de rivalidades seculares, aí incluindo os povos balcânicos, eslavos, tchecos e magiares, numa desarmonia permanente a gerar insolvência e decadência de impérios como o austro-húngaro, o turco-otomano e o russo, que embora vastos e em decomposição interna, teimavam em adquirir novos espaços uns dos outros.

A Rússia, por exemplo, em seu desejo de dominar o Mar Cáspio, estender-se pelo mar Báltico, quem sabe reinar no mar do Norte, na fria Escandinávia  e na amena Jutlândia, resolveu se distanciar da Alemanha e se aliar à Franca e à Inglaterra.

Se o urso russo desejava banhar-se no Báltico, por ser quase seu, o mesmo não acontecia ao sul, com o rio Volga perdendo-se no Cáspio e o Dnieper chegando ao Mar Negro, carregando consigo o traumas de uma guerra perdida na Criméia, hoje ainda no noticiário, e tolhida bem abaixo na Turquia, justamente neste portão dos Dardanelos, onde nenhum russo morreu, mas morreram milhares de Australianos e Neozelandeses ali pereceram cem anos passados na campanha Anzac.

E a campanha Anzac de tomada de Gallípoli fora montada bem longe dali pelo Almirantado inglês, e concebida por Winston Churchill, o seu 1o Lorde.

Nesta campanha, pretendia-se ao tomar Gallípoli, conquistar os Dardanelos, sufocar a Turquia e abastecer a Rússia com armas e munições, de modo a fortalecer a frente oriental da Europa em conflito, uma vez que milhares de  franceses e ingleses apodreciam, atolados na muralha humana que se estendia da Bélgica à Suíça.

Mas a campanha  de Gallípoli fora imaginada a partir de uma motivação bisonha, fruto de tolo orgulho ferido em tentativa frustrada de aprisionamento de dois navios alemães, o Goeben e o Breslau, que zombara da armada bretã.

Porque estes dois navios, praticamente sozinhos e com pouco combustível a seu dispor, conseguiram despistar a grande armada inglesa, em diversas oportunidades, numa verdadeira avacalhação, iludindo os navios Indomitable, Indefatigable, Gloucester, Defence, Black Prince, Warrior e Duke de Edimburgh e tantos outros , que se perdiam  entre a bota italiana e sua bola, a Sicília, permeando os contrafortes de Messina.

E o feito se fez bem maior porque os navios alemães só podiam ser abastecidos de carvão em alto mar, sem poder fundear qualquer porto italiano.

E mesmo assim conseguiram se safar de seus perseguidores, tangenciando as ilhas Cícladas, ingressando no mar Egeu, e finalmente se dirigindo aos Dardanellos , onde seria bem recebido pela Turquia, que acossada pela Rússia, acabava de entrar na guerra  ao lado da Alemanha.

A título de reposição histórica, é preciso destacar que a entrada da Turquia na guerra teve outras motivações, de modo algum cavalheirescas, afinal durante longo tempo o Sultão evitara entrar no conflito.

Dizia-se então, que o “sanguinário” sultão Abdul Hamid II persistia em neutralidade por temer assumir o lado errado no conflito.

Mas, se Hamid hesitava decidir o lado por não saber quem seria o vitorioso, ele evitava romper com os ingleses porque estava para receber dois modernos navios que houvera adquirido nos estaleiros britânicos; o Sultan Osman e o Reshadieh.

Estes navios tinham sido adquiridos por 7,5 milhão de libras esterlinas, mediante subscrição popular, em que cada camponês da Anatólia contribuíra com sua moeda, patrioticamente, por necessidade urgente de renovação da frota turca.

Assim, o desfecho do Sultão em favor do lado alemão só aconteceu depois que o Lorde Almirante Winston Churchill resolveu requisitar os dois navios, deles se apropriando, em verdadeiro ato de pirataria e desconsideração.

Deste modo, estando agora a Turquia em guerra, os fugidios navios Goeben e Breslau puderam ser recebidos em festa nos Dardanelos e incorporados à frota turca com novos nomes: Jaws  e Midilli.

É quando Churchill num acesso de fúria determina a invasão dos Dardanelos e o afundamento dos dois navios resultando num fracasso sucessivo.

Primeiro porque a esquadra inglesa não conseguiu ingressar no estreito e ultrapassar o Hellesponto, bombardeada pelos dois lados do canal, cujo leito, bem minado, conseguira retirar da luta três importantes navios ingleses e ameaçar os demais.

Segundo, porque ao lado do insucesso naval, Churchill resolveu tomar o estreito, a fio e a força, enviando grande força aliada composta de ingleses, franceses, australianos, neozelandeses e indianos, que lutaram bravamente e foram quase totalmente dizimados pela artilharia turca, bem posicionada estrategicamente, com a força aliada ao total desabrigo numa faixa estreita de praia.

Foi grande o elenco de erros, nunca suficientemente assumidos.

Foram também muitas as baixas aliadas; cerca de 200 mil, muitos deles mortos; cerca de 21 mil do Reino Unido, 10 mil franceses, 8,7 mil australianos, 2, 7 mil neozelandeses e 1, 4 mil indianos, com as baixas turcas incontavelmente bem maiores.

Politicamente, caiu o gabinete do Primeiro Ministro Asquith, levando de roldão Winston Churchill o maior culpado dos erros de Gallípoli.

Das gargantas de Gallípoli surgiu, porém, um herói, Mustafa Kemal, depois conhecido como Atatürk, o pai da Turquia moderna.

Do Anzac Day, o 25 de abril de 1915, fica o exemplo para jamais ser repetido, afinal nos cemitérios de Gallípoli repousam “Johnnies e Mhmets irmanados no mesmo solo pátrio”.

“Johnnies”, porque eram assim chamados os invasores da força Anzac, e “Mehmets”, os turcos que os repeliram.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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