Interpretação axiológica e contextual do Direito

O Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul acaba de manter decisão que indeferiu o registro da candidatura de Luciana Genro ao cargo de vereadora (Recurso Eleitoral n° 63220). O motivo: ela é parente (filha) do atual Governador daquele estado, Tarso Genro, do que resulta a sua inelegibilidade, nos termos do § 7° do Art. 14 da Constituição Federal.

Eis a regra constitucional:

§ 7º – São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição.

Uma aplicação direta e objetiva da regra de fato conduz à conclusão a que chegou o TRE/RS: a) Luciana Genro, por ser filha de Tarso Genro, é sua parente consangüínea de primeiro grau; b) Luciana Genro é candidata ao cargo de vereadora, eleição que se processa no âmbito municipal, abrangida pela circunscrição estadual; c) Luciana Genro não é titular de mandato eletivo e candidata à reeleição; ela não é vereadora.

Penso, porém, que o caso revela aplicação de regra jurídica em total descompasso com os princípios que fundamentam a sua existência, assim também com todo o contexto fático que a envolve.

Com efeito, ao considerar inelegíveis os parentes consanguíneos ou afins dos detentores de mandato executivo, essa regra impede a concentração familiar do poder. Trata-se, portanto, de fazer valer o princípio republicano, vedando que oligarquias familiares se apoderem do poder político e, a partir dessa concentração, garantam a sua perpetuação em cargos políticos chave para o exercício de funções governativas/legislativas.

O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de registrar que é o princípio republicano que fundamenta a regra do Art. 14, § 7° da CF:

O art. 14, § 7º, da CB, deve ser interpretado de maneira a dar eficácia e efetividade aos postulados republicanos e democráticos da Constituição, evitando-se a perpetuidade ou alongada presença de familiares no poder.” (RE 543.117-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 24-6-2008, Segunda Turma, DJE de 22-8-2008.)

A regra estabelecida no art. 14, § 7º da CF, iluminada pelos mais basilares princípios republicanos, visa obstar o monopólio do poder político por grupos hegemônicos ligados por laços familiares. Precedente. Havendo a sentença reconhecido a ocorrência da separação de fato em momento anterior ao início do mandato do ex-sogro do recorrente, não há falar em perenização no poder da mesma família (…)." (RE 446.999, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 28-6-2005, Segunda Turma, DJde 9-9-2005.)

O regime jurídico das inelegibilidades comporta interpretação construtiva dos preceitos que lhe compõem a estrutura normativa. Disso resulta a plena validade da exegese que, norteada por parâmetros axiológicos consagrados pela própria Constituição, visa a impedir que se formem grupos hegemônicos nas instâncias políticas locais. O primado da ideia republicana – cujo fundamento ético-político repousa no exercício do regime democrático e no postulado da igualdade – rejeita qualquer prática que possa monopolizar o acesso aos mandatos eletivos e patrimonializar o poder governamental, comprometendo, desse modo, a legitimidade do processo eleitoral." (RE 158.314, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 15-12-1992, Primeira Turma, DJ de 12-2-1993.)

Pois bem, esse fundamento republicano não está presente no caso Luciana Genro, o que demanda, para exata percepção, o exame do contexto fático envolvido.

É que a candidatura de Luciana Genro, apesar de filha de Tarso Genro, não representa um projeto político de concentração e perpetuação do poder familiar naquele estado. Luciana Genro e Tarso Genro são ferrenhos adversários políticos. Luciana Genro era deputada federal pelo PT, sendo dele expulsa, em dezembro de 2003, porque na Câmara dos Deputados contrariou orientação formal da bancada partidária e votou contra a proposta de reforma da previdência, dentre outros motivos. À época, Tarso Genro era Ministro de Estado do Governo Lula, liderança política de influência no PT e nada fez – politicamente – para tentar reverter aquela expulsão; antes a referendou.

Desde então, Luciana Genro percorre trajetória política que se contrapõe à do seu pai. Foi uma das fundadoras do PSoL, e foi deputada federal de oposição ao segundo mandato do Governo Lula (2007-2010). Em 2010, embora muito bem votada, não se reelegeu deputada federal porque o PSoL não obteve o quociente partidário necessário para conquistar uma vaga na Câmara Federal. No PSoL, Luciana Genro se insurge contra o que considera capitulação política do PT às bandeiras ideológicas que antes contestava. Para Luciana Genro, essa capitulação ideológica do PT tem como um dos principais expoentes o seu pai, ex-Ministro de Estado e atual Governador do Rio Grande do Sul. O projeto político do PSoL no Rio Grande do Sul é o de derrotar o PT, derrotar Tarso Genro e outros adversários de outras vertentes ideológicas igualmente contrárias às do seu atual partido.

Se é assim, fica evidente que eventual eleição de Luciana Genro para o cargo de vereadora em nada representará ameaça de concentração do poder familar naquele estado. A posição política que ela eventualmente obtenha como vereadora a fará trabalhar para que Tarso Genro não se reeleja governador em 2014. Isso não é futurologia, é constatação cotidiana da vida política nacional, que certamente não escapa aos julgadores do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul, que aplicou a regra do § 7° do Art. 14 da Constituição em total descompasso com os princípios que fundamentam a sua existência, assim também com todo o contexto fático que a envolve.

O caso ainda será apreciado pelo Tribunal Superior Eleitoral, podendo chegar ao Supremo Tribunal Federal, tendo em vista a questão constitucional envolvida.

Aniversário de cinco anos

Esta coluna completa exatos quatro anos de existência. Em 12/09/2007, escrevi o primeiro texto, denominado “O apagão da transparência no Senado Federal”. Tratava da decisão do Senado Federal de realizar sessão secreta para julgamento do Senador Renan Calheiros, acusado de prática de conduta incompatível com o decoro parlamentar. De lá pra cá, semanalmente, a coluna tem se dedicado à análise de temas jurídicos de repercussão no cotidiano da sociedade.

Agradeço inicialmente à Infonet, pelo convite para um desafio que se renova a todo instante. Em seguida, agradeço aos leitores e amigos, muitos dos quais, tanto através de e-mail como por via de comentário no próprio site e em redes sociais, têm emitido opiniões e participado construtivamente das discussões propostas pela coluna.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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