Mata-se um jornalista e se deixa um amarrado para o mês

É do ministro Carlos Ayres Britto, extraordinário defensor das regras magnas contidas na Constituição – documento cada vez mais apreciado graças, inclusive, a ele –, a máxima de que a liberdade de informação e a democracia tem uma relação tão entranhada, “um vínculo tal de retroalimentação, que romper esse cordão umbilical é matar as duas: a imprensa e a democracia”. Relativizar a liberdade de imprensa é, observa ele, justificar a censura prévia.

O propriaense recém-empossado na presidência do Supremo Tribunal Federal defende que a liberdade de expressão e de imprensa tenha precedência sobre outros direitos, incluindo os ligados à privacidade e à honra. Para ele, não cabem à Justiça ou a qualquer órgão do Estado ações de censura prévia. “A Constituição tornou pleno [a liberdade de comunicação] o que era livre [a liberdade de expressão] para deixar claro que entre a imprensa e a sociedade civil há uma linha direta”, afirma. E a democracia, conclui ele, “nos confere o status de país juridicamente civilizado”.

Mas no espaço tênue entre a lei garantidora e a realidade diária há uma cunha que ainda incomoda e precisa ser arrancada. O Brasil é o segundo país das Américas onde mais jornalistas são assassinados e um dos mais violentos do mundo para a prática da profissão. Só fica atrás da Síria, onde há uma guerra civil provocada por um regime ditatorial, e, na região, segue o México, lugar mais violento para um jornalista trabalhar e onde há uma guerra declarada do narcotráfico contra aquele país fronteiriço com os EUA.

Existe maior desprezo à liberdade de expressão do que cometer o mais grave dos crimes para calar a voz que denuncia, que leva ao conhecimento comum – o que é um direito de todos –, os mal feitos alheios praticados contra a sociedade? O caso mais recente de ato extremo contra a liberdade de expressão no Brasil é o do repórter de política e blogueiro Décio Sá, baleado em um restaurante em São Luís na última segunda-feira, dia 23. Sá trabalhava no jornal O Estado do Maranhão, da família do presidente do Senado, José Sarney.

Na última sexta-feira, o escritório do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU condenou o assassinato do jornalista. O organismo chamou de "tendência perturbante" o fato de mais um jornalista ter sido morto. Décio Sá foi o quarto profissional de imprensa assassinado no país em menos de quatro meses. Parece que, no Brasil, mata-se um jornalista e se deixa um amarrado para o mês seguinte.

Por aqui, a maioria das mortes ocorreu quando o jornalista estava no exercício da profissão, cumprindo pauta, investigando, denunciando, e as zonas de violência também estão relacionadas a denúncias contra grupos de mafiosos e narcotraficantes. E quase sempre não se pune os culpados.

Aproximadamente 70% dos assassinatos de jornalistas registrados no Brasil nos últimos vinte anos ficaram impunes, segundo levantamento da organização americana Comitê para a Proteção dos Jornalistas. O CPJ contabilizou 20 assassinatos de jornalistas entre 1992 e começo de 2012 no Brasil, sendo que 14 não foram punidos. Outros seis foram parcial ou totalmente esclarecidos e seus culpados punidos. O Brasil foi classificado pelo comitê em 11º lugar entre os países onde há mais impunidade nos crimes contra profissionais da imprensa.

O levantamento do CPJ, no entanto, já está desatualizado. A organização contabilizou em 2012 apenas o assassinato do jornalista Mário Randolfo Marques Lopes, em Vassouras (RJ), em fevereiro. Não foram incluídos no estudo a recente morte de Sá e os assassinatos do radialista Laécio de Souza, da rádio Sucesso FM, de Camaçari (BA), ocorrida em janeiro, e do repórter do Jornal da Praça e do site Mercosulnews, Paulo Roberto Cardoso Rodrigues, o Paulo Rocaro, em Ponta Porã (MS), também em fevereiro.

“Os crimes contra jornalistas continuam sendo um dos principais problemas que a imprensa enfrenta nas Américas”, afirma Gustavo Mohme, da Sociedade Interamericana de Imprensa, após a morte de Sá. O Brasil só se distingue do México porque o Estado investiga os casos, é o que acredita a secretária de Direitos Humanos da Federação de Jornalistas da América Latina e Caribe (Fepalc), Zuliana Lainez. O problema é a impunidade.

Uma medida importante para a proteção dos profissionais poderia ser uma lei estabelecendo que as investigações policiais sobre crimes envolvendo jornalistas no exercício da profissão ocorram em âmbito federal. Enquanto isso, no país abençoado por Deus e bonito por natureza permanece o descompasso entre liberdade de informação e democracia.

Zé Peixe

No dia 30 de outubro de 2000, na Folha de S. Paulo, o jornalista Fernando Gabeira publicou o texto “O mar não está mais para a família Peixe”, um libelo contra a agressão do homem contra a natureza e uma homenagem ao amigo Zé Peixe, falecido na última quinta-feira, aos 85 anos. Vale reproduzir o texto aqui:

“Aracaju, para quem não conhece, ainda é uma tranquila capital do Nordeste. Novos e imponentes edifícios foram erguidos nos últimos anos, shoppings centers brotaram aqui e ali, como, de resto, aconteceu em todas as principais cidades do país.

Só que grande parte da Aracaju moderna foi conquistada aterrando os manguezais. As multidões que atravancam as galerias climatizadas das butiques, na verdade, são os vencedores pisoteando o túmulo de uma paisagem dilacerada para sempre.

A família Peixe, Zé e Rita, irmãos que nasceram nas primeiras décadas do século 20, ele nos anos 20, ela nos anos 30, contemplam assustados o rumo que o progresso tomou, soterrando as imagens da infância à beira-mar.

Zé Peixe, hoje com 74 anos, é o mais importante prático da história do Brasil. Conhece como ninguém a barra do rio Sergipe e consegue levar navios para um porto seguro, analisando ventos, prevendo o movimento das areias e, às vezes, jogando-se no mar bravio para achar a passagem.

Zé Peixe é uma lenda. Antes mesmo de morrer, virou estátua de bronze, mas rejeita a idéia de se aposentar. Continua dormindo no chão, à espera de que o chamem para levar um navio a uma rota segura, ou salvar marujos e barcos perdidos. Ele salva mesmo. Não só porque é capaz de nadar 11 km, mas porque se atira da altura de 17 metros, cerca de quatro andares, nas águas do mar.

Zé Peixe ainda mora na orla. Mergulha todas as manhãs, mas reconhece que a água está poluída com esgoto. Rita, que aos 15 anos salvou, ao lado do irmão, uma tripulação de um barco do Rio Grande do Norte, hoje só nada na piscina de sua casa.

A história da família Peixe é ligada aos manguezais de Aracaju. Zé conhece todos e previu o desequilíbrio que os aterros iriam provocar. Mas não conseguiu impedi-los. Vive para o mar, sai de manhã, volta no final da tarde, só come frutas e diz que, desde a Segunda Guerra Mundial, não toma banho de água doce. Olhando a pele curtida de sol e sal, você acredita nele. Zé e Rita Peixe nadam desde meninos. Nem se lembram se um dia aprenderam a nadar. Acham que já nasceram sabendo.

Num casarão velho em Aracaju, Zé Peixe costuma olhar os grandes edifícios e se lembrar dos manguezais da infância. Seu primeiro barco foi feito com um baú da família, pequena travessura que apontava para o destino no mar. Ele viu os corpos de náufragos de um navio, o Aníbal Benevolo, afundado por bombardeio alemão na Segunda Guerra. A partir daí, nunca mais ninguém se afogou perto dele.

Agora, não só os manguezais da infância foram embora. Os próprios navios foram desaparecendo a partir do grande impulso rodoviário da década de 50. A escolha do automóvel como símbolo da liberdade individual e dos shoppings centers como espaço de comércio e convivência mudou o horizonte. Zé Peixe ainda ensina ao seu neto os mistérios da barra do rio Sergipe, mas sabe que, há algumas décadas, o mar não está mais para peixe em Aracaju.

Conheci Zé Peixe em 96. Foi me esperar no aeroporto e tinha medo de não poder entrar, porque estava descalço. Só usa sapatos aos domingos, para entrar na missa dominical. Desde o meio da década, interesso-me por ele e penso na importância de preservar suas memórias.

Zé Peixe vive no casarão da família e todos os seus papéis, com medalhas, títulos e diplomas, estão num quarto cheio de poeira e bolor, alguns já literalmente estraçalhados. Isso tem um lado bom, porque ele percebe que consegue sobreviver às suas próprias memórias, que vão se acabando enquanto ele continua firme, nadando de uma praia para outra, levando tudo o que precisa num plástico colado ao calção.

Para o Brasil, no entanto, era fundamental que encontrássemos alguma maneira de preservar a memória desse homem que assombrou vários capitães estrangeiros. Um russo chegou a pedir que o detivessem quando estava para se lançar ao mar.

Achou que Zé Peixe estava se suicidando, quando, na verdade, estava fazendo o que mais gostava de fazer: jogar-se dos navios que levava para fora da barra e voltar nadando como um menino dos manguezais.”

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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