Monteiro Lobato e a hipertrofia do STF

Fosse uma questão objetiva de concurso público e a hipotética alternativa seria assinalada como errada: “em mandado de segurança, é cabível designação de audiência”. Fosse um juiz de primeira instância a designar audiência em mandado de segurança, o espanto e a perplexidade, no âmbito da comunidade jurídica, seriam enormes.

Todavia, o Ministro Luiz Fux (destacado e respeitado processualista, coordenador da comissão de juristas que apresentou anteprojeto do novo código de processo civil, ainda em apreciação no Congresso Nacional) designou audiência de conciliação em mandado de segurança de competência originária do STF (MS n° 30952), e não houve maior espanto nem perplexidade na comunidade jurídica nacional.

O que se noticiou com destaque, no caso (merecido destaque, registre-se, devido à relevância do tema objeto da controvérsia), foi o mérito do mandado de segurança em questão, por meio do qual o Instituto de Advocacia Racial e o técnico em gestão educacional Antônio Gomes da Costa Neto pedem ao Supremo Tribunal Federal que anule ato de homologação de parecer do Conselho Nacional de Educação – que liberou a adoção da obra de Monteiro Lobato “Caçadas de Pedrinho” para fins didáticos na educação pública – devido ao seu caráter supostamente racista e discriminatório contra os negros.

A audiência de conciliação foi realizada na data de 11 de setembro deste ano de 2012. Não houve consenso, mas as partes interessadas concordaram em se reunir na data de 25 de setembro, para detalhamento de uma proposta de acordo.

Não foi a única heterodoxia do caso. Em tempos de “julgamentos heterodoxos” (expressão muito utilizada a propósito do julgamento, pelo STF, da Ação Penal n° 470, mencionada pela imprensa como ação do “mensalão”), o Mandado de Segurança n° 30952 é caso exemplar de um processo judicial que tramita à margem da previsão constitucional e legal e à margem das finalidades para as quais existe o “remédio heroico” do mandado de segurança.

Com efeito, podem ser apontadas as seguintes heterodoxias no Mandado de Segurança n° 30952 : a) designação de audiência; b) legitimidade ativa e objeto; c) admissão de assistentes; d) “objetivação” do mandado de segurança.

A Lei que regulamenta o rito processual do mandado de segurança (Lei n° 12.016/2009) não prevê etapa destinada à conciliação entre as partes, até pelo rito célere que impõe à sua tramitação: despacho inicial do juiz, informações prestadas pela autoridade apontada como coatora, manifestação da pessoa jurídica de direito público interessada, parecer do Ministério Público e sentença. Tudo em prazos curtos, de movo a viabilizar uma rápida decisão, em ação constitucional de tramitação preferencial.

Também é curioso notar que o mandado de segurança n° 30952 foi impetrado pelo Instituto de Advocacia Racial e pelo técnico em gestão educacional Antônio Gomes da Costa Neto, mas não se sabe exatamente em que condição, porque o sítio do STF na internet não mais permite o acesso à petição inicial de mandados de segurança, salvo aos advogados que atuam no processo. O Instituto de Advocacia Racial atua como proponente de um mandado de segurança coletivo? Mas mandado de segurança coletivo, embora possa ser impetrado por entidade de classe ou associação legalmente constituída, deve ser em defesa dos interesses de seus membros ou associados. É isso mesmo? O Instituto de Advocacia Racial atua, no caso, na defesa de direito líquido e certo dos “advogados raciais”? E se for mandado de segurança coletivo, é impetrado em litisconsórcio ativo com um técnico em gestão educacional? O direito líquido e certo que perseguem, no caso, é o mesmo? Não parece muito mais caso de ação popular, ou ação civil pública? E, nesse caso, como não há competência originária do STF para julgamento de ação popular e ação civil pública, não seria o caso de não ser ser conhecido e julgado pelo STF, mas pela instância judicial de base?

Outro aspecto peculiar: o Ministro Relator, Luiz Fux, admitiu no processo, como assistentes, os herdeiros de Monteiro Lobato. Levou em conta que, na condição de herdeiros, podem sofrer prejuízos jurídicos e patrimoniais com eventual anulação do ato do Conselho Nacional de Educação que liberou a adoção da obra de Monteiro Lobato “Caçadas de Pedrinho” para fins didáticos na educação pública. Então existe um direito líquido e certo de qualquer autor (e de seus eventuais herdeiros) à adoção de suas obras pelo Ministério da Educação? A não recomendação da obra pelo Ministério da Educação gera danos a qualquer autor, que pode pleitear em juízo uma reparação patrimonial por isso?

Ao mesmo tempo, o Ministro Luiz Fux indeferiu o ingresso no processo, como assistentes, do Instituto Afrobrasileiro de Ensino Superior e de Francisco de Assis: Educação, Cidadania, Inclusão e Direitos Humanos (Faecidh). Fundamentou o indeferimento no fato de que “seus interesses estão no mesmo plano da sociedade brasileira e, portanto, desvinculados de caráter jurídico ou patrimonial”. Então os impetrantes do mandado de segurança atuam, no caso, como representantes de toda a sociedade brasileira? Têm eles legitimidade processual para isso? Não seria o caso, em boa verdade, então, de arguição de descumprimento de preceito fundamental, e não de mandado de segurança?

Não que o caso seja de todo carente de sustentação jurídica minimamente razoável. Afinal, os juízes, com base no Código de Processo Civil, podem, a qualquer tempo, tentar obter a conciliação das partes (partes, aí, no sentido processual); a admissão de assistentes, embora seja normalmente submetida a critérios mais rigorosos de demonstração de interesse, também não é totalmente descabida na hipótese.

Contudo, o mais provável, fosse outro o tema de fundo, seria o indeferimento liminar do mandado de segurança.

Ocorre que, como o tema de fundo envolve interessante controvérsia jurídico-constitucional, a opor e ligar temas como proibição do tratamento racialmente discriminatório, educação pública, liberdade de expressão da atividade artística ou literária e ainda a obra literária de um dos nossos mais expressivos do ramo (Monteiro Lobato), o Supremo Tribunal Federal (por ora, por determinação do Ministro Luiz Fux) faz de tudo não apenas para manter o caso sob sua apreciação, mas também para protagonizar o processo decisório.

Todos os principais ingredientes da “objetivação” do processo constitucional comparecem no caso em exame, a exemplo da realização de audiência (similar à “audiência pública” prevista em lei como instrumental dos processo objetivos de competência do STF) e da admissão de assistentes (similar à admissão dos “amici curiae”, prevista em lei como instrumental dos processos objetivos de competência do STF).

O que o caso revela é, mais uma vez, demonstração da intensa hipertrofia do Supremo Tribunal Federal. Qualquer controvérsia constitucional de maior relevância e repercussão social e política logo desemboca no STF, que filtra, a seu juízo discricionário não devidamente fundamentado, os casos em que deverá ou não atuar, conforme avalie ser ou não o caso de protagonizar o processo decisório no tema.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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