Nova Jurisdição Constitucional e a Mula de Tales

O Presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, Ministro Gilmar Mendes, comemorou a significativa redução do número de processos que chegaram à Suprema Corte no ano de 2008 em relação ao ano passado. “O ministro disse que o Supremo fechará o ano com 60 mil processos distribuídos, 45 a mil a menos que nos anos anteriores.” (http://www.conjur.com.br/static/text/72220,1).

 

Esse “êxito” tem sido atribuído à racionalização do sistema judiciário proporcionada pela Reforma do Poder Judiciário levada a cabo pela emenda constitucional nº 45/2004 e por suas leis regulamentadoras. Enfatiza-se, em especial, os novos institutos da Súmula Vinculante e da Repercussão Geral das questões constitucionais discutidas como pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário.

 

Somente no final de 2006 é que foram aprovadas as Leis nº 11.417 e 11.418, ambas de 19 de dezembro. A primeira regulamentou o Art. 103-A (súmula de efeito vinculante) e a segunda regulamentou o § 3º do Art. 102 (repercussão geral) da Constituição Federal (na redação conferida pela EC n° 45/04).

 

A Lei nº 1.418/2006 expressamente delegou ao STF a atribuição de “estabelecer as normas necessárias” à sua execução, em seu Regimento Interno (Art. 3º). Já a Lei nº 11.417/2006 determinou que “o procedimento de edição, revisão ou cancelamento de enunciado de súmula com efeito vinculante obedecerá, subsidiariamente, ao disposto no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal” (Art. 11).

 

Em 2007, ainda sob a Presidência da Ministra Ellen Gracie, o STF deu passos significativos para a efetiva utilização desses novos mecanismos porque: a) aprovou emenda regimental, alterando diversos dispositivos de seu regimento interno para o fim de normatizar o procedimento de verificação de existência de repercussão geral das questões constitucionais discutidas no recurso extraordinário; b) deu início ao procedimento sistemático de aprovação de súmulas com efeito vinculante.

 

Pois bem, esses novos mecanismos são saudados pelo Ministro Gilmar Mendes: “Não é necessária uma avalanche de processos para que haja uma boa decisão. Estender os entendimentos já pacificados e dar soluções homogêneas idênticas em processos individuais já é um avanço”.

 

Quem parece ter razão nessa matéria é o sempre crítico e preciso Sérgio Sérvulo da Cunha. Diz ele:

 

A partir da Emenda Constitucional n° 45/2004 o sistema sofreu uma guinada fatal: a restauração da argüição de relevância (agora com o nome de incidente de “repercussão geral”) feriu profundamente o controle difuso; e a instituição da “súmula vinculante” o transformou, de sistema misto, em sistema hiperconcentrado. Aí, o controle de constitucionalidade deixa de ser controle do governo por parte do cidadão, e assume uma incestuosa feição de controle do governo por parte de órgãos do próprio governo, mediado por agência que não detém representação política. Significa, portanto, a extensão ao Judiciário das concepções oligárquicas dominantes na “demoelitecracia”. A Corte que tem o poder de acolher ou não um recurso, segundo seu arbítrio, não é republicana: quem não tem o direito de recorrer, e o que faz é apenas suplicar, não é cidadão, mas súdito.

Se o constituinte indicou o STF como “guardião da Constituição” (CF de 1988, art. 102, caput) é porque pretendeu incluir em sua cometência todos os casos de contrariedade à Lei Magna. Esta não se fez para que em alguns casos se dispense o controle da efetividade de suas disposições; nela tudo é relevante, e nela inexiste disposição cuja contrariedade deixe de ter repercussão geral.

Hoje, entretanto, em alguns casos (contrariedade a princípio implícito, contrariedade a conjunto de disposições constitucionais), assim como em todas as hipóteses que não venham a ser consideradas como de repercussão geral, o controle de constitucionalidade estará restrito, praticamente, aos Tribunais Estaduais ou aos Tribunais Federais, de modo que, quanto a esses tópicos, a eles – e não ao STF – é que caberia designar como guardiões da Constituição. (grifou-se) (“O Recurso Extraordinário, a repercussão geral e a mula de Tales”, in Cadernos de Soluções Constitucionais, volume 3, Malheiros, 2008, p. 431).

 

Mais adiante prossegue Sérgio Sérvulo da Cunha, com maestria:

 

Ao invés do acesso amplo à Justiça – previsto como direito fundamental pela Constituição de 1988 – e da co-extensão entre o processo constitucional e os direitos e garantias constitucionais, passou-se a adotar como princípio fundamental na organização judiciária a diminuição do volume dos processos submetidos à sua apreciação.

Eliminar os processos, ao invés de decidir os litígios, transformou-se na preocupação dominante, principalmente nas Cortes Superiores. Passaram-se a louvar, como comportamento virtuoso, técnicas para eliminar processos tidos como repetitivos ou malconcebidos. O direito das partes? Ora, o direito das partes! Esta passaram a ser presumidas como litigantes de má-fé, seus advogados como escroques. Com o quê ganharam, os pretórios, o suporte moral de que precisavam para se comportarem como a mula de Tales.

Situou-se no grande número de recursos a responsabilidade pela morosidade da Justiça. Como se não fosse o STF, via Poder Legislativo, o responsável pela criação de novos e arrevesados recursos, a cada vez que se intentava um novo óbice ao recurso extraordinário. Eis que, agora, com as sinuosidades da repercussão geral, alcança-se a perfeição, a apoteose da irracionalidade. (grifou-se) (op. cit. p. 432-433).

 

Sérgio Sérvulo da Cunha finaliza esclarecendo o que é se comportar como a mula de Tales, transcrevendo trecho do “Dicionário de Provérbios e Curiosidades”, de R. Magalhães Jr.:

 

Fazer como a mula de Tales é querer desfazer-se de suas responsabilidades, aliviar-se de qualquer modo de tarefas que parecem incômodas. A mula de Tales é um exemplo de malícia, mas essa malícia não fica sem castigo. Trata-se de uma fábula narrada por Plutarco e repetida por Montaigne, no Capítulo XII do volume segundo dos Ensaios. A história era narrada pelo filósofo grego Tales de Mileto. Uma mula, carregada de sal, atravessava um rio, e, tendo tropeçado e caído, observou que o peso de sua carga diminuíra consideravelmente. A água dissolvera grande parte do sal que ela transportava. Desde então, sempre que encontrava qualquer curso de água, a mula se apressava a deitar-se nele com a sua carga. E tantas vezes o fez que seu dono, descobrindo-lhe a malícia, ordenou que substituíssem as cargas de sal por cargas de lã. O resultado passou a ser o contrário: a lã, molhada, pesava mais. Corrigiu-se então a mula do seu mau costume. O sentido moral da fábula é o de que os homens que sabotam seu trabalho acabam em apuros ainda maiores, pois um dia terão lã em vez de sal para conduzir às costas. La Fontaine tratou do assunto em ‘O asno carregado de esponjas e o asno carregado de sal’ (Fábulas, Livro II).

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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