O abominável voto secreto no Parlamento

Há pouco mais de cinco anos, esta coluna passou a ser escrita e publicada neste importante espaço da Infonet. O título da coluna: “O ‘apagão’ da transparência no Senado Federal” . Nela, foi abordada a perplexidade diante da anunciada sessão secreta para deliberação no processo de cassação do mandato do Senador Renan Calheiros (que, ao final, não se concretizou, porque não foi alcançada a necessária maioria absoluta de votos favoráveis). Ao mesmo tempo, foi registrado que, embora o voto de cada Senador, naquela deliberação, fosse secreto, por expressa previsão constitucional, já era hora de refletir sobre o equívoco desse regramento e operacionalizar a sua mudança para o voto aberto.

Pois bem, o tema voltou à discussão nacional, no ano passado (2012), após a conclusão do processo de cassação do mandato da deputada Jaqueline Roriz, com desfecho pela não-cassação, adotado o voto secreto. E, agora no plano estadual, o tema voltou à discussão, após a adoção, pela Assembleia Legislativa do Estado de Sergipe, do voto secreto na deliberação sobre a escolha do novo Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe.

A Constituição da República menciona apenas as seguintes situações em que o voto no Parlamento será secreto: 1 – competência privativa do Senado Federal para “aprovar previamente, por voto secreto, após argüição pública, a escolha de: a) magistrados, nos casos estabelecidos nesta Constituição; b) Ministros do Tribunal de Contas da União indicados pelo Presidente da República; c) Governador de Território; d) Presidente e diretores do banco central; e) Procurador-Geral da República; f) titulares de outros cargos que a lei determinar” (art. 52, III); 2 – competência privativa do Senado Federal para “aprovar previamente, por voto secreto, após argüição em sessão secreta, a escolha dos chefes de missão diplomática de caráter permanente” (art. 52, IV); 3 – competência privativa do Senado Federal para “aprovar, por maioria absoluta e por voto secreto, a exoneração. de ofício, do Procurador-Geral da República antes do término de seu mandato” (art. 52, XI); 4 – deliberação sobre perda de mandato parlamentar em processo de cassação: “Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa” (art. 55, § 2º); 5 – deliberação congressual sobre o veto do Presidente da República a projetos de lei: “O veto será apreciado em sessão conjunta, dentro de trinta dias a contar de seu recebimento, só podendo ser rejeitado pelo voto da maioria absoluta dos Deputados e Senadores, em escrutínio secreto” (art. 66, § 4º).

Na mesma toada, a Constituição do Estado de Sergipe menciona apenas as seguintes situações em que o voto no Parlamento será secreto: 1 – deliberação parlamentar sobre perda de mandato em processo de cassação (Art. 16, § 2° e Art. 44, § 2°); 2 – competência da Assembleia Legislativa para “aprovar, previamente, por voto secreto, após arguição pública, a escolha: a) dos três Conselheiros do Tribunal de Contas do Estado, indicados pelo Governador; b) do Procurador-Geral de Justiça; c) dos titulares de outros cargos que a lei determinar” (Art. 47, XXIV, alíneas “a”, “b” e “c”); 3 – competência da Assembleia Legislativa para “aprovar, por maioria absoluta e por voto secreto, a destituição do Procurador Geral de Justiça antes do término do seu mandato (Art. 47, inciso XXVII); 4 – deliberação da Assembleia Legislativa sobre o veto do Governador do Estado a projetos de lei: “O veto será apreciado em sessão plenária da Assembleia Legislativa dentro de trinta dias a contar de seu recebimento, só podendo ser rejeitado pelo voto da maioria absoluta de seus membros, em escrutínio secreto”  (Art. 64, § 4°).

Observe-se, a propósito, que nem mesmo a Constituição do Estado de Sergipe permite o voto secreto para deliberação sobre escolha de Conselheiro de Tribunal de Contas nas vagas reservadas à Assembleia Legislativa, prevendo a excepcionalidade do voto secreto apenas para aprovação, pela Assembleia, da escolha dos Conselheiros do Tribunal de Contas indicados pelo Governador, o que, salvo melhor juízo, não foi o caso envolvendo a disputa entre Belivaldo Chagas e Susana Azevedo (reproduzindo o modelo de composição do Tribunal de Contas da União determinado pela Constituição Federal, a Constituição do Estado de Sergipe prevê que o Tribunal de Contas do Estado será integrado por sete Conselheiros, sendo três deles escolhidos pelo Governador, com aprovação da Assembleia – dois nomeados alternadamente entre auditores e procuradores do Ministério Público Especial – e quatro deles escolhidos pela Assembleia Legislativa, devendo todos preencher os requisitos de mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, idoneidade moral e reputação ilibada, notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública e mais de dez anos de exercício de função ou de efetiva atividade profissional que exija esses mencionados conhecimentos – Art. 71, incisos I, II, III e IV e § 1°, incisos I e II).

Desnecessário registrar que norma regimental interna da Assembleia Legislativa não pode prever a adoção de voto parlamentar secreto em tema que a Constituição Federal e a Constituição do Estado não imponha tal excepcionalidade.

Afinal, a Constituição-cidadã (assim batizada pelo ex-Deputado Ulysses Guimarães, que presidiu a Assembléia Nacional Constituinte de 1987-88) redemocratizou o Estado Brasileiro, garantindo que a República Federativa do Brasil constitua-se em Estado Democrático de Direito, tendo como fundamentos, dentre outros, a soberania e a cidadania (art. 1º, caput e incisos I e II da Constituição Federal). E o modelo de democracia formal que previu foi o de democracia semi-direta, fundado no primado da soberania popular, em que todo poder emana do povo, que o exerce combinadamente por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição (parágrafo único do mesmo artigo). O exercício direto pelo povo de sua soberania se dá através dos mecanismos do plebiscito, referendo e iniciativa popular de projetos de lei (art. 14, incisos I, II e III, combinado com art. 61, § 2º da Carta Política), enquanto o exercício da soberania por meio de representantes eleitos se dá, sobretudo, mediante o voto direto, secreto, universal e periódico (art. 14, caput).

Assim, o sistema democrático-representativo-eleitoral somente deve ser compreendido na perspectiva de que os representantes eleitos se constituem em instrumentos do exercício, pelo povo, de sua soberania. Nessa diretriz, a atuação dos detentores de mandatos eletivos deve ser pública, transparente, permitindo ao povo-eleitor o seu acompanhamento e o monitoramento constante de seus desempenhos.

Daí que, em regra, as votações e as sessões no âmbito do Poder Legislativo são abertas, de modo a assegurar que o eleitor-cidadão fiscalize cotidianamente o exercício das atividades políticas de seus representantes.

Nesse sentido, para fortalecimento da democracia transparente que a Constituição impõe, o desejável – e, cada vez mais, imperioso – é a abolição, por meio de emenda à Constituição, de tais manifestações de voto secreto no Parlamento; não se aponte, aí, o óbice do voto secreto como cláusula pétrea, pois a cláusula pétrea do inciso II do § 4º do art. 60 é o voto secreto do eleitor-cidadão.

E não se argumente que o voto secreto, nesses casos, é forma de preservação da independência do parlamentar diante de eventuais pressões externas ao seu voto, pois o parlamentar não há de temer qualquer represália ao seu voto aberto, porque “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” (Art. 53, caput).

Nem tampouco se defenda o voto secreto do parlamentar, como alguns fazem ao menos nos casos de deliberações sobre cassação de mandato, sob o fundamento de que é constrangedor para o parlamentar declarar publicamente o seu voto pela cassação do mandato de um colega com quem convive diariamente. Ora, quem se dispõe ao exercício de função pública, ainda mais função pública eletiva, deve estar à altura da responsabilidade desse exercício, e não deve temer reações corporativas de seus colegas; mandatário eletivo deve prestar contas de seus atos ao público, ao seu eleitor, à sociedade, e não aos seus colegas; constrangedor e  nada democrático, portanto, é a manutenção do voto secreto do parlamentar, que sonega ao seu eleitor tomar conhecimento de como é que seu representante atua, em seu nome, no parlamento.

Que a sociedade se mobilize para, aproveitando o bom momento e o contexto favorável, pressionar legitimamente o Congresso Nacional para que aprove a proposta de emenda à constituição que acaba com o voto secreto no parlamento e que impõe, para todas as deliberações legislativas, sem exceções, o voto aberto!

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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