O aperfeiçoamento da Lei Seca

Como já tivemos oportunidade de comentar aqui, neste espaço da Infonet, a aprovação de leis “endurecedoras” como resposta do Estado a um suposto aumento da violência e da insegurança tem se revelado, ao longo dos anos, medida desastrosa e ineficaz.

Um capítulo recente e bastante polêmico dessa novela foi a chamada “Lei Seca” (Lei nº 11.705, de 19 de junho de 2008), aprovada pelo Congresso Nacional como resultado de conversão de uma medida provisória editada pelo então Presidente da República. Naquele momento, a assim chamada “Lei Seca” alterou o Código de Trânsito Brasileiro para inibir o consumo de bebida alcoólica por condutor de veículo automotor.

A vontade da “Lei Seca” era nítida: “se beber, não dirija” (ainda que tenha bebido em módicas quantidades)! Não houve dúvida de que a aparente intenção da lei era excelente: prevenir a ocorrência de tantos acidentes de trânsito causados por condutores que irresponsavelmente dirigem seus veículos sob efeito do álcool. Era o prestígio ao direito fundamental à vida que a Constituição assegura.

Contudo, para efeitos penais, a inovação legislativa da “Lei Seca” se revelou um verdadeiro desastre. Isso porque, para a configuração do crime, passou a exigir a concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, o que não era exigido antes. Confira:

Redação Anterior 

Art. 306.  Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem:

Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Redação Posterior à Lei Seca

Art. 306.  Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de  álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Ora, na redação anterior à "Lei Seca", o Código de Trânsito Brasileiro exigia apenas que o condutor estivesse a conduzir o veículo, em via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeito análogo, de modo a expor a dano potencial a incolumidade alheia. A comprovação disso podia ser efetuada por meio de exames clínicos ou até mesmo prova testemunhal. Com a nova redação, conferida pela “Lei Seca”, para configuração do crime, passou a ser exigida a prova da concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas. E essa configuração exigia comprovação por prova técnica, a saber: submissão do condutor ao teste do bafômetro ou exame de sangue. Do contrário, não havia como ficar caracterizado o crime, não sendo possível a aplicação da pena.

Aliás, essa interpretação da lei federal foi confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n° 1111566, selecionado como paradigma de recursos repetitivos nos quais se debate a mesma controvérsia jurídica.

O problema é que não se pode impor ao condutor a submissão ao teste do bafômetro ou a realização de exame de sangue. É que ninguém pode ser compelido a se auto-incriminar. Na esfera penal, ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo.

Como facilmente se percebe, no ponto examinado, a mudança efetuada pela “Lei Seca” revelou-se um enorme desastre e, ao invés de contribuir para a preservação da vida e para coibir a irresponsável conduta de direção com embriaguez, tem contribuído mesmo é para a total impunidade – na esfera penal – de tais condutores.

A mudança legislativa, para suprimir do tipo penal a menção à concentração de álcool no sangue, era imperiosa, e já se tornara consenso na comunidade jurídica e percebida pelas instâncias políticas que podiam promover essa mudança (Congresso Nacional, em especial).

Felizmente, essa imperiosa mudança foi concretizada com o advento da Lei n° 12.760, de 20 de dezembro de 2012, que alterou o Código de Trânsito Brasileiro para aperfeiçoar a chamada “Lei Seca”, corrigindo os equívocos acima apontados.

Com efeito, no ponto específico aqui abordado, a Lei n° 12.760/2012 conferiu nova redação ao Art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, suprimindo a exigência de concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas da configuração do crime:

Redação Anterior 

Art. 306.  Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de  álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Redação Após a Lei 12.760

Art. 306.  Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:

Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

§ 1o  As condutas previstas no caput serão constatadas por:
I – concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou
II – sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora.

§ 2o  A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.

§ 3o  O Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.

Com a alteração legislativa, não há mais necessidade de comprovação da presença de álcool no sangue para que o tipo penal fique configurado. Ao contrário, o crime se configura com a condução de veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência. Como não é mais indispensável para que o crime fique configurado qualquer demonstração de presença de quantidade de álcool no sangue, outros meios de detecção de alteração da capacidade psicomotora em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência serão válidos para esse fim.

Aqui mesmo neste espaço da Infonet apontamos que essa constatação, antes da “Lei Seca” de 2008, podia ser efetuada por meio de exames clínicos ou até mesmo prova testemunhal.

Pois bem, a Lei n° 12.760/2012 deixa isso bem claro, no § 2° do Art. 306 (por ela incluído), que estabelece que essa verificação (de alteração da capacidade psicomotora em razão da influência do álcool) poderá ser obtida também mediante exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, assegurado, em observância à garantia constitucional do contraditório, o direito à contraprova.

Com esse aperfeiçoamento, a impunidade que fora gerada pela “Lei Seca” (condutores de veículos automotores que irresponsavelmente dirigiam sob efeito do álcool se recusavam ao exame do bafômetro e, quando a submissão a tal exame lhes era imposta, obtinham anulação dessa prova devido à garantia da não auto-incriminação) não tem mais fundamento jurídico de continuidade.

Palmas, portanto, ao legislador, que soube reconhecer o erro e corrigir o equívoco.

É um passo importante, mas não pode ser o único. É preciso que a fiscalização seja constante e intensa. Em um mês de vigência da nova lei, há notícias de efetiva fiscalização realizada em todo o país. E ela precisa prosseguir. Do contrário, logo logo os irresponsáveis sentirão que, por ausência de fiscalização, não serão punidos em caso de condução de veículo automotor em estado de embriaguez.

Com fiscalização, a lei alcança o efeito inibidor. Sem fiscalização, não alcança. Noutras palavras: o que tem efeito inibidor da prática do crime não é a dureza, mas sim a certeza da pena!

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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