O fim dos tiranos

Marcos Cardoso*

O tirano é um animal que viceja na estupidez humana, cresce como um ser superior, julga-se imortal quando no poder, vive atormentado por fantasmas, sofre tresloucado quando invariavelmente fracassa e morre tragicamente. A história é implacável e está fartamente ilustrada com figuras dessa estampa.

Tome-se como exemplo dois tipos cujos malditos legados o mundo ainda insiste em não sepultar de uma vez: Adolf Hitler e Benito Mussolini. O italiano inspirador do fascismo foi executado por partigianos numa tarde de 28 de abril de 1945, abraçado com sua amante, Claretta Petacci, após mais de 20 anos à frente de uma ditadura que levou o seu povo à miséria. Duas tardes depois, o sócio alemão pai no nazismo suicidou-se, ao lado da mulher Eva Braun, depois de 11 anos liderando um nacionalismo e um militarismo ferozes, que resultaram no mais odioso e brutal genocídio já levado a efeito por toda a humanidade.

Um dia, o castelo perpétuo do tirano vai ruir. O delírio de poder eterno dos dois começou a virar loucura quando alemães e italianos foram derrotados pelos britânicos no norte da África. “A roda da fortuna deu a volta no dia 29 de junho de 1942”, escreveu o próprio Mussolini, citado por Joel Silveira no livro “Segunda Guerra Mundial: todos erraram, inclusive a FEB” (Espaço e Tempo, 1989).

“Ao saber das más-novas, Mussolini foi inesperadamente acometido de insuportáveis dores no estômago, que o prostaram”, narra o jornalista sergipano, o mais destacado correspondente daquela guerra. “O homem parece mais humilhado que doente, está triste e incapaz de reagir ao peso da idade (Mussolini tinha, então, 59 anos)”, teria dito um hierarca do fascismo.

Silveira vai contando: em fins de 1942, Benito Mussolini é um homem profundamente marcado, física e moralmente é a caricatura do que foi. A entrada da Itália na guerra só lhe trouxe derrotas, decepções e humilhações. O Duce via-se relegado cada vez mais a um segundo plano – e logo não seria mais que um títere do Führer alemão.

A vida do ditador ficaria pior em julho de 1943, quando os primeiros soldados aliados desembarcariam na Sicília, dando início à tomada da Itália. Registre-se que a conquista da ilha contou com o apoio da Máfia, em acordo com os americanos. Esse gesto histórico prova que é preciso se aliar aos inimigos para derrotar um inimigo maior e mais belicoso.

“Tudo isso havia minado profundamente o físico e o moral de Mussolini. Sua antiga úlcera voltara a lhe queimar as entranhas e eram mais constantes os seus acessos de vômitos. Encovam-se visivelmente suas faces, os pomposos uniformes (a maioria deles por ele próprio desenhada) começam a lhe dançar no corpo que emagrecia”. Seus subordinados começam a resmungar contra ele.

“Quando a sorte da Sicília lhes pareceu definitivamente selada, o rei e muitos dos líderes fascistas chegaram à óbvia conclusão de que era tempo de se livrarem de Mussolini”. Nota: a Itália ainda era uma monarquia, que tinha como bobo da corte o débil rei Emmanuel III.

O Grande Conselho Fascista foi reunido, Mussolini foi preso, percorreu algumas prisões, até ser resgatado de um Albergo no cume do Gran Sasso por uma espetacular ação de paraquedistas alemães. A melodramática libertação causou uma grande excitação no país e no exterior, segundo palavras de Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda nazista.

Mas Mussolini virou definitivamente uma marionete nas mãos de Hitler quando instalado como chefe de uma fantasiosa república nas proximidades de Milão. Ameaçado pela resistência italiana, fugiu com a amante escoltado por uma coluna alemã, mas foi alcançado pelos partigianos antes de chegar à Suíça.

Joel Silveira conclui: “No dia seguinte, 29 de abril de 1945, um domingo, às 9 horas e 30 minutos da manhã, o corpo de Mussolini (juntamente com o de Claretta Petacci, de Pavolini, de Starace, de Bombacci e de Gelormini) era levado para Milão e jogado no chão duro do Piazzale Loreto. Em seguida, atendendo os reclamos da multidão compacta, foram dependurados de cabeça para baixo, para que todos pudessem vê-los, num travessão de um posto de gasolina”.

Laura Fermi, a mais credenciada biógrafa de Mussolini, também citada por Silveira, escreveu: “Assim terminou a longa ditadura do homem que penhorou a liberdade, sufocou o pensamento independente e conduziu seu país a uma guerra desastrosa. Deixou atrás de si pouco pesar, pois aquele amor por si, que julgava tão arraigado em seu povo, estava destilado. Poucos o choraram; muito mais rejubilaram-se com a liberdade reconquistada e com a nova esperança que surgia da sua morte”.

 

Hitler drogado

Hitler vivia sob efeito de drogas. Abusava das injeções, chegando a tomar doze delas por dia, e de Pervitin (metanfetamina), a droga secreta que estimulava os soldados nazistas, além de morfina, soporíferos e até afrodisíacos. “Hoje se sabe que ele estava sob os efeitos daquele poderoso estimulante quando de todas as decisões que, a partir de 1942, tomou no terreno militar, e que resultaram em tão terríveis desastres”, escreveu o jornalista sergipano em outro capítulo do livro citado.

Assim drogado, e de forma tão maciça, com doses que Morell (o médico apontado como charlatão) ia aumentando de dia para dia, Hitler é um farrapo humano, afirma Joel Silveira: “Seu braço direito e sua perna esquerda tremem, atacados de Paralisis agitans; os olhos se mostram exageradamente dilatados; a pele é de um pálido esverdeado e doentio. Já não pode expor-se ao sol, de forma que toda a sua atividade é desenvolvida à noite, nos insólitos horários por ele estabelecidos que faziam o desespero dos seus colaboradores, particularmente dos seus generais”.

Vegetariano, mas glutão, o pai do nazismo ingeria enormes quantidades de bolos, tortas, doces de toda espécie e chocolate. “Sofrendo terrivelmente de prisão de ventre, era presa fácil de flatulência e, para corrigi-la, engolia uma atrás da outra certas pílulas antigases que Morell lhe receitava, e em cuja composição entrava a estricnina”.

Em 16 de abril de 1945, quando Eva Braun reencontra no bunker da Chancelaria o homem que de fato amava, apesar de Hitler tentar de toda maneira dissuadir a amante do seu propósito de encontrá-lo, a situação de Berlim já estava selada. Além da investida dos aviões ingleses e americanos, a cidade que agoniza também sofre com os bombardeios soviéticos, que despejam impiedosamente seus obuses certeiros sobre o que resta da outrora capital do III Reich.

Não é apenas Berlim que está em ruínas, mas também Hitler, constata Joel Silveira. O ministro “Albert Speer, que o visitou pela última vez quando do seu 56º aniversário, no dia 20, espantou-se com o aspecto físico do Führer: ‘…eu tinha diante de mim um decrépito ancião. Tremiam-lhe as mãos, andava curvado e arrastando os pés. Até a voz era insegura e perdera o antigo vigor, sendo a forma de falar titubeante e monótona. (…) O uniforme, antes impecável, estava naqueles últimos tempos frequentemente desalinhado e manchado pelo alimento que levava à boca com a mão trêmula’”.

O decrépito e quase derrotado Hitler já tinha decidido suicidar-se e Eva Braun morreria com ele. “Não lutarei. Há o perigo de que eu seja apenas ferido e caia vivo nas mãos dos russos. Nem quero que os meus inimigos mutilem meu corpo. Dei instruções para que seja incinerado. Fraulein Braun quer morrer comigo”, disse a Speer, que posteriormente declararia que teve “a impressão de já estar falando a um morto”.

Ministro da Produção e do Armamento, Albert Speer foi um dos 21 dirigentes do III Reich levado a julgamento no Tribunal de Nuremberg, em 1946. Diferentemente dos 11 carrascos que foram condenados à forca, ele pegou 20 anos de detenção.

O golpe mortal que atingiu Hitler foi a notícia da morte de Mussolini, de sua amante Claretta Petacci, e da maioria dos líderes fascistas. Ele decide que se matará assim que se casar com Eva Braun, o que acontece na madrugada do dia 29, numa cerimônia realizada no próprio bunker. Logo depois, Hitler dita seu testamento para a secretária. Uma sorridente Eva Braun despede-se de todos, faz recomendações e doa seu casaco de pele para a própria secretária.

É Joel Silveira quem descreve o ato derradeiro da vida do tirano. “Três horas da tarde do dia 30 de abril de 1945. Há já algum tempo Hitler e Eva estão encerrados em seus aposentos privados. À porta da antecâmara que conduz às dependências do Führer, o coronel Otto Gunsche monta guarda. E é ele quem conta: ‘De repente ouvi um tiro. Bormann (secretário pessoal de Hitler) foi o primeiro a entrar. Eu segui logo atrás de Lunge, o camareiro de Hitler. O Führer estava sentado numa cadeira: havia dado um tiro na boca. Eva estava estendida num divã. Tirara os sapatos, arrumando-os junto ao sofá. O rosto de Hitler estava coberto de sangue. Eva pusera um vestido azul com gola e punhos brancos e tinha os olhos completamente abertos. Na sala havia um odor penetrante de cianureto, o veneno que ela havia ingerido’”.

Os dois corpos, enrolados em lençóis, foram levados até o jardim da Chancelaria, que continuava a ser intensamente martelada pela artilharia soviética. O motorista de Hitler encharcou com 200 litros de gasolina os dois corpos e ateou fogo. Os despojos incinerados do Führer e de sua agora mulher foram enterrados ali mesmo, saudados pelos canhões inimigos. “No fim da vida, Hitler matou pessoalmente talvez a única pessoa que realmente o amou e que, por causa disso, tenha amado”, encerra Joel Silveira.

É o fim dos tiranos. Assim foi com o ditador Augusto Pinochet, que governou o Chile com mão de ferro de 1973 a 1990, e terminou a existência respondendo a processos e sofrendo prisão. Assim foi com o ditador argentino Jorge Videla (1976 a 1981), que terminou seus dias numa cadeia nos subúrbios de Buenos Aires. Não foi diferente com Getúlio Vargas, o tirano que se suicidou quando já não era ditador e exercia um governo democrático. E não deixa de ser emblemático o desfecho da ditadura militar no Brasil, quando o general João Baptista Figueiredo se despediu melancolicamente do poder, deixando o Palácio do Planalto pela porta dos fundos.

Assim está na história: o tirano um dia paga pela sua tirania.

* É jornalista e escritor. Foi diretor de Redação do Jornal da Cidade, secretário de Comunicação da Prefeitura de Aracaju, diretor de Comunicação do Tribunal de Contas de Sergipe e é servidor de carreira da UFS. É autor dos livros “Sempre aos Domingos – Antologia de textos jornalísticos” e do romance “O Anofelino Solerte”.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
Comentários

Nós usamos cookies para melhorar a sua experiência em nosso portal. Ao clicar em concordar, você estará de acordo com o uso conforme descrito em nossa Política de Privacidade. Concordar Leia mais