OS FILHOS DO RIO

Encontrei o meu amigo Osmário em plena folia do Pré-Caju e, como sempre anda, muitíssimo bem acompanhado. Como atento jornalista, observou que eu escrevia muito sobre os meus filhos (Diego, Manu, Gabi e Ruan), dizendo até o número de vezes em que acreditava ter ocorrido a chamada “exaltação”. O clima da festa e a aproximação ruidosa da pipoca que anunciava a chegada de Ivete Sangalo impediram que explicasse a razão de sua observação, mesmo porque é tarefa complexa decifrar o que pensa o irreverente jornalista. Ademais, o ambiente musical do axé serve para agitar o corpo, mas nada colabora para animar um bom papo ou mesmo destilar filosofia.

 

O destino determinou que nos encontrássemos na semana seguinte, agora na espera de uma outra pipoca.  Estávamos na carrancuda fila que sempre se aglomera para comprar a amanteigada pipoca que antecede o acesso dos cinéfilos nas salas dos cinemas, nos fazendo voluntárias vítimas do marketing que martela combinar comida, refrigerante e tela-grande. E como fila é lugar fantástico para se conversar, cuidou ele de esclarecer a sua constatação sobre a minha assumida condição de pai-coruja.

 

Elucidou que não falara ser piegas escrever sobre filhos, relação familiar ou questões assumidamente amorosas. Ao contrário, achava o tema pertinente e atraente, mesmo porque o mundo precisava divulgar as coisas que provocam amizade, paixão, compaixão e amor. E enquanto ele falava, não pude deixar de lembrar de uma frase, cujo autor não mais recordo, que dizia serem os livros e os textos meros amontoados de letras e páginas escritas em preto-e-branco, pois o que diferenciava cada texto era o olhar do intérprete, pois é este quem dá o tom colorido, vibrante ou apaixonado de cada leitura.

 

É realmente o leitor quem dá vida ou assassina um texto, usando até armas ou argumentos jamais pensados ou construídos pelo autor. É o leitor quem enxerga a beleza ou tristeza contida em um livro, sorrindo ou chorando como nunca imaginou ou pretendeu quem escreveu a história. É o olhar do leitor, em suma, o principal escritor de toda história escrita ou texto externado.

 

Não era sem razão, portanto, que o jornalista sergipano enxergava a beleza da relação paterna, fazendo relembrar textos já escritos em tempos passados e quase esquecidos. É que Osmário, como filho simultâneo do Mar e do Rio, inclusive por isso batizado com a junção dos dois nomes, reproduziu o sentimento de paternidade que está a viver. Ele refletindo a sua dor de filho diante do seu pai Rio Sergipe morrendo, que definha diante do seu olhar, sem que se enxergue medidas visando a sua cura urgente.

 

Parece até que vem a ser este o maior drama que os filhos dos rios que banharam e fizeram nascer o Estado de Sergipe. Não basta o Rio São Francisco estar ameaçado de morte por uma insana proposta de transposição de suas águas, querem dar destino idêntico ao seu irmão Rio Sergipe, fazendo-o correr para o mesmo mortal leito. E com um agravante para o outrora pujante Rio dos Siris, com a mais completa omissão da maioria esmagadora de seus filhos.

 

É que o Rio Sergipe vem sofrendo constantes agressões, tanto no que se refere ao desmatamento de suas margens, quanto aos esgotos que são impiedosamente jogados desde a nascente, assim como a poluição que lhe retira o respirar.   Dele abusam os empresários rurais com os seus agrotóxicos, os industriais com o lixo que engorda os seus lucros, as cidades com a imundice que produz impunemente e os cidadãos com a má-educação ambientar explícita. E mais grave ainda, sem qualquer política de prevenção ou recuperação de sua precária saúde, até porque o governador João Alves apenas demonstra que quer sugar de suas margens o amparo necessário para a ponte que servirá de ligação e marketing de uma sua possível candidatura à reeleição.

 

Urge, portanto, que os filhos do rio despertem do sono que os mantêm navegando nas águas plácidas da acomodação. É preciso que ousem remar em direção à recuperação do seu curso normal, mesmo quando os sinais indicam que estejam inutilmente remando contra a maré da insensibilidade política, humana e social. Mas os que ousam fazer, sabem, como ninguém, que a História foi construída por aqueles que desafiaram as correntezas do medo e os mares bravios da ignorância, como fizeram os velhos marujos que compreenderam, no bom lembrar de Fernando Pessoa, que “navegar é preciso”.

 

* Cezar Britto, é advogado e secretário-Geral da OAB
cezarbritto@infonet.com.br

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