Quando falamos em pratos regionais, típicos ou de raiz vem logo em mente cheiros, gostos e ingredientes de uma determinada região, e que muitos visitantes vão até ela para experimentá-los. São as sensações únicas proporcionadas por uma localidade através do modo de fazer, de manipular, de consumir, de apresentar, oferecendo ao paladar um banquete, por vezes, inesquecíveis e que fidelizam e encantam os turistas, ou seja, os sabores e saberes de uma região.
Se definirmos a gastronomia como a arte de cozinhar para transmitir prazer a quem a consome, e se observarmos o turismo como uma fonte de realizar sonhos através de uma viagem, os dois se cruzam como conhecimento cultural de um determinado destino.
Que os sabores são atrativos turísticos, ninguém duvida. O que dizer da Bahia sem o Acarajé ou do Rio de Janeiro sem a Feijoada? De Morretes, no Paraná, sem o seu Barreado, ou de Belém, no Pará, sem o Tacacá e o Tucupi?
Há de convir que não são somente os ingredientes que fazem um prato ser típico de uma localidade. Faz toda diferença a forma de prepará-lo e a história por traz desses preparos, por vezes, seculares, e até mesmo a percepção que a comunidade faz dele, ou seja, o sentimento de pertencimento.
Visitei a região do Recôncavo Baiano em busca dessas sensações proporcionadas pelo paladar. A região é rica em preservar tradições religiosas afros, e junto com os ritos, transformam os pratos em sensações únicas carregadas de baianidades, como o Xinxim de galinha ou de bofe, os ensopados, a Anduzada, o Pirão de Mandioca, as moquecas, o feijão de leite de coco, e a famosa Maniçoba, derivada de raízes indígenas.
Quando viajo, tento passar por essas sensações. Afinal, quais são os típicos sabores de sua região? Qual o sabor que mais representa a Bahia? Há um prato que só pode ser encontrado lá? Claro que sim. O acarajé é uma sumidade na Bahia. O bolinho de feijão fradinho frito no azeite de dendê, recheado de caruru, vatapá, camarão defumado e salada encanta em qualquer esquina popular e nos melhores restaurantes das cidades.
Da Chapada Diamantina, o Godó e os pratos à base de cactos. O Godó vem recheado de tradições da época dos garimpeiros e nada mais é do que um ensopado de carne de sol e banana da terra, que pode ser acompanhado com arroz, feijão, farofa e salada. Do sertão baiano vem o Guizado de bode e no Recôncavo, região que compreende Santo Amaro da Purificação, Cachoeira e São Fêlix, a Maniçoba e a Anduzada são grandes representantes raiz desse estado cheio de cores, cheiros e sabores.
Os dois pratos são derivados de um Brasil rural, primeiramente, registrado em documentos que trazem a mandioca, o milho e os grãos. Os índios já os produziam para subsistência e a partir deles faziam pirão, beijus, bolos e bebidas fermentadas. Os portugueses trouxeram os cozidos de carne de boi com legumes, sardinha, bacalhau. Com o período da escravidão no país, os africanos inseriram na cozinha baiana diversos ingredientes, muitos deles derivados de rituais, a exemplo do azeite de dendê e defumados.
Experimentei a tradicional Maniçoba do Recôncavo, unanimidade em restaurantes das principais cidades. A Maniçoba é um cozido da folha da mandioca, embebecida de carnes defumadas e embutidos, tipo uma feijoada.
Em Santo Amaro da Purificação, Terra dos Velosos, conheci Carla ainda na feira livre local, adquirindo pimentinhas, temperos e grãos. Percorri a cidade e logo fui para o “Lá em Carla” com o objetivo de sentir o que viria daqueles ingredientes. Não titubeei em pedir Maniçoba e Anduzada.
Ela contou que a folha da macaxeira é adquirida já preparada por mãos santamarenses. A folha é triturada e cozida por várias vezes para virar um ensopado bem consistente e verde escuro, com um cheiro bem tradicional que puxa a folha seca.
Após cozinhar por vezes, para tirar a toxicidade, a folha ganha temperos, cheiro verde, bacon, carne seca, pedaços de toucinho de porco e a tradicional carne de fumeiro. Os ingredientes são misturados e deixam por algumas horas para apurar. Ela garante que no Recôncavo a maniçoba é diferente.
Após saborear o ensopado consistente com carnes como tira-gosto, fui elevado ao pecado da gula por provar a Anduzada, um típico prato feito à base do feijão Andu, mas que também carrega as carnes típicas de feijoada. “O feijão Andu não é produzido durante todo o ano, por isso, em determinados períodos o prato não fica viável de produzir”, conta.
Em Cachoeira, cidade histórica, berço de Ana Nery e Dona Dalva, além dos prédios históricos, dos mais de 19 terreiros de candomblés, das igrejas cobertas por azulejos portugueses e da Irmandade da Boa Morte, a feira livre local documenta tradições e ensinamentos do povo do recôncavo, como D. Nelzete, que vende as trouxinhas das folhas de mandioca já preparadas para fazer a Maniçoba. Do lado direito da barraca dela, folhas de arruda para “chamar freguês”. Nos seus mais de 70 anos, de riso fácil, D. Nelzete carrega os sabores para se cozinhar a folha.
Foi em Cachoeira que também fiz um passeio pelos tradicionais pratos baianos, como as moquecas: siri, peixe, camarão e até maturi ou banana da terra são ingredientes que junto com o leite de coco e de dendê fazem a festa dos paladares mais exigentes. De sobremesa, pamonha de carimã, adquirido na feira local.
Afinal, Anduzada e Maniçoba são uma boa pedida ou não são para se ter o gostinho secular do povo do Recôncavo Baiano?
De sobremesa, a pamonha de Calimã e Quebra-Queixo
Coco ralado, farinha de mandioca, açúcar, cravo e a forma de fazer. No lugar de assar na palha da bananeira, cozinha. E assim é a principal diferença da pamonha de calimã para o pé de moleque, encontrados nas feiras livres do Recôncavo. A textura a pamonha é mais solida e o gosto menos apurado que o assado, mas o sabor continua irresistível e cheio de nordestinidade.
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Fotos: Silvio Oliveira Insta: @tonomundosilvio
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